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Por Mauricio Abbade Edição #62

O show tem de continuar

Arte secular, o circo tradicional brasileiro se reinventa para manter as portas abertas

Em uma era de transformações o ambiente circense não está imune a mudanças. Enquanto alguns circos tradicionais têm de apagar as luzes e deixar o picadeiro para trás por não atrair mais o público, outros se esforçam para adaptar a forma tradicional de se fazer circo no Brasil com os padrões internacionais, como trazer teatro musical para suas apresentações. Um exemplo de sucesso nessa transição é o Circo dos Sonhos que há meses vem trazendo inovações em seus espetáculos.

Na semicircunferência, 700 bancos se organizam em volta do picadeiro. No alto da cortina, uma placa com as palavras “Circo dos Sonhos” em luzes brilhantes. O Circo dos Sonhos esteve sobre asfalto no estacionamento do Hipermercado Extra do Morumbi, na Zona Sul de São Paulo, de setembro a novembro de 2017. Logo na entrada do estacionamento, dois homens de maquiagem de palhaço e traje a rigor param os carros para informar a presença de um circo no local – e, aproveitando a situação, tentam vender brinquedos e balões. Os ingressos custam entre R$40 e R$60 e o orçamento vindo da bilheteria e da venda de pipoca e brinquedos é como o circo se sustenta.

Um dos desafios para o Circo dos Sonhos é introduzir os moldes do circo internacional para o brasileiro
Isabella von Haydin

As cortinas azuis se abrem. A produção e encenação do primeiro número se parece com a abertura de um musical da Broadway: com todos os artistas entrando em cena e dando uma prévia do que está por vir. A narrativa que o espetáculo conta é a história da menina Ly que, durante uma visita a biblioteca, é surpreendida por Alan, que surge como em um passe de mágica e lhe entrega um livro especial, retirando o tablet de suas mãos. Por causa disso, a personagem principal se aventura por um mundo fantástico ao qual as palavras escritas por tinta podem levá-la.

Marcelo Ramos é coreógrafo e cuida da dinâmica dos bastidores. Ele conta que introduzir o universo do teatro e musical aos artistas foi complicado, pois grande parte deles, vindos de circos tradicionais, não possuíam proximidade com esses espetáculos, mas a inovação era necessária. O seu objetivo era criar algo com referências no contemporâneo, como o Cirque du Soleil, mas sem desrespeitar as tradições circenses.

Os modos de fazer circo têm sofrido transformações, Mario Bolognesi, professor de artes cênicas aposentado da Unesp, observa, em seu artigo intitulado de “Circo e teatro: aproximação e conflito”, que no circo contemporâneo existe a introdução das artes dramáticas – ocorrendo uma abdicação do fator “épico” e comunicativo do espetáculo para investir no aspecto “dramático” e expressivo –, o objetivo de alçar o espetáculo à condição de “belo” e a abolição da presença do apresentador no espetáculo. Ele também afirma que, desde seus passos juvenis, o circo sempre dialogou e incorporou as inovações dramáticas e teatrais, entretanto, “o espetáculo circense, no século XX, aprofundou no fato acrobático e feérico”, diz o professor. Porém, nos dias de hoje, essa aproximação voltou ao picadeiro.

Introduzir os moldes do circo internacional para o brasileiro é um desafio para o Circo dos Sonhos, que reservou seis meses apenas para a primeira montagem do espetáculo, que continua sendo aprimorado. Por exemplo, na primeira semana de lona montada em São Paulo, a corda bamba não estava presente, e hoje ela arranca suspiros da plateia. Parte dos artistas, como o contorcionista Thiago Nogueira, passaram por um processo seletivo para participar do elenco. Todos foram pré-selecionados por vídeo, e depois os de maior destaque chamados para uma audição presencial. O espetáculo foi montado pela junção do que os idealizadores estavam procurando com as habilidades singulares que encontraram nos artistas.

As artes circenses consistem na capacidade do artista, por meio de muita dedicação e treino, de elevar seu corpo a posições extremas e improváveis
Isabella von Haydin

Contorcionismos

Os desafios permanentes de quem vive se deslocando, contudo, não desanima quem trabalha no picadeiro. A dedicação intensa é algo necessário para todos os artistas que irão participar do “maior espetáculo da Terra”. Thiago Nogueira, por exemplo, precisa começar a se alongar antes de seus colegas de trabalho. Exaustivamente, o contorcionista treina todo dia para colocar o corpo em posições inimagináveis. Ele estudou em uma escola de circo e está pela primeira vez na vida itinerante, morando em trailers e afastado de sua família. Diz, enquanto se alonga para o espetáculo que está por vir, ser a experiência mais gratificante de sua vida pois “a melhor parte do circo é conviver com pessoas que conseguem realizar coisas tão surpreendentes quanto as que você faz”.

Diferente de artistas vindos de escolas-circo, Thaina Rabelo e Janalice Turini são artistas que vieram de famílias tradicionalmente circenses. Rabelo – ao contrário de Turini, que diz nunca ter pensando em sair do ambiente circense –já tentou viver longe do circo por um ano. A experiência não teve sucesso. “Senti falta do meu lugar de berço”, afirma.

Para realizarem seus números, os artistas precisam treinar diariamente para garantir, por exemplo, a elasticidade do corpo
Isabella von Haydin

Por coincidência, as duas nasceram no mesmo circo: o Garcia, uma das lonas mais importantes para a história brasileira das artes. O Garcia chegou a ter 360 artistas e ser o quarto maior do mundo. Em 2003, depois de 75 anos de atividades no país, a lona começou a se arriar e, por conta das dívidas que chegavam à casa dos 800 mil reais, teve de fechar suas portas.

Diversas são as razões para sua queda. Desde os anos 80, o Garcia enfrentava crises financeiras sucessivas. A alta do dólar tornou inviável o pagamento de artistas internacionais com remunerações atreladas à moeda norte-americana – o circo já chegou a pagar 2,7 mil dólares por semana a trapezistas mexicanos. O picadeiro já encarava a concorrência da televisão. E, além de tudo isso, diversas leis passaram a proibir, em municípios específicos, a presença de animais no show, e, para o Garcia, não existiam espetáculos sem animais – já que ele era um dos únicos circos do mundo onde era realizada a procriação deles.

No dia 29 de Dezembro de 2002, na região de Santo Amaro, Zona Sul Paulistana, aconteceu o último espetáculo do Garcia. Apenas 280 pessoas na arquibancada capaz de receber 3.500 espectadores. A arrecadação, lastima a dona do circo, Carola Boets, não foi suficiente nem para pagar os 300 reais gastos com a manutenção dos geradores daquela noite. O apresentador Arisvaldo Rabelo tradicionalmente abria os shows e, naquela noite, não foi diferente. Ele, mesmo estando triste durante o espetáculo, afirmou que não iria falar em despedida: “No lugar de adeus, vou me despedir como sempre fiz, dizendo até o próximo espetáculo”. Entretanto, para o Garcia, a próxima apresentação nunca aconteceu.

As crises mundiais e as mudanças na economia nacional afetaram negativamente a manutenção do circo no País
Isabella von Haydin

As lonas do Circo dos Sonhos, diferente das do Garcia, ainda estão de pé. Eles já receberam, dentro dos mais de 30 anos de experiência, mais de 2,8 milhões de espectadores. “As pessoas hoje possuem um pensamento que o circo morreu ou que está decadente, o que é um imenso engano, cada um tem seu modo de fazer circo” afirma Asdrubal Savioli, produtor do espetáculo.

O Circonteúdo, conhecido entre os do meio como o principal portal da diversidade circense, reafirma a fala de Savioli com a continuação de uma pesquisa com a colaboração do Núcleo de Artes Circense da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB), iniciado pelo Pindorama Circus, sobre o levantamento dos circos itinerantes no Brasil, ela afirma que no Brasil, existem 178 circos itinerantes. Pesquisas como essas ainda estão em construção e não possuem números exatos já que localizar todos os circos de um país continental como Brasil não é uma tarefa fácil.

A lona mágica

Caras de surpresa da plateia por causa dos feitos fantásticos dos artistas; gargalhadas provocadas pelo palhaço; a beleza das cores dos figurinos. O primeiro ato do Circo do Sonho então se encerra com um número de báscula – acrobacias com a participação de uma “gangorra”. A música, por um instante, é trocada pela fala de alguém anunciando um breve intervalo e, após isso, o ambiente é invadido por músicas infantis, como hits do Balão Mágico e Xuxa. A plateia sai para ir ao banheiro, comprar pipoca ou churros, ou simplesmente esperam em suas cadeiras pelo começo do segundo ato.

A função recomeça. A razão de todas as gargalhadas dessa vez vem de Hudson Rocha, de 45 anos e representando a quinta geração de sua família no circo o artista que, ao colocar a maquiagem, se torna capaz de arrancar o sorriso no rosto do público. Alega que “em meu dicionário, circo é sinônimo de normalidade”.

Do contorcionismo às risadas, o Circo do Sonhos preza sempre pela beleza dos figurinos
Mauricio Abbade

Por mais que no primeiro ato o palhaço tenha aparecido apenas uma vez, no segundo sua presença se dá em dois momentos. Mesmo provocando gargalhadas estrondosas, o foco de luz não está apenas em Rocha. Chega a hora dos números de mágica tomarem o centro da arena: desaparecer, dissociar do corpo a cabeça da assistente de palco, reaparecer, trocar de roupas instantaneamente; esses são os verbos que espelham esse momento.

Semelhante ao começo do primeiro ato, o segundo também termina com a volta de todo o elenco. Um número de sapateado apodera-se do picadeiro ao mesmo tempo em que os artistas agradecem a presença do público – esses que, como Sandra Corrêa, de 52 anos, escolheu se encontrar embaixo da lona que abriga o encantamento circense. Além de dizer que “os palhaços lembram minha infância” a principal razão da vinda de Corrêa foi trazer sua neta Valentina, de cinco anos, para também entrar em contato com as artes circenses.

O palhaço, figura indispensável do circo, atravessa pelo espetáculo com sua pantomima particular
Mauricio Abbade

A melodia dos aplausos sustenta o momento final do espetáculo. E, com sorrisos do tamanho que suas bochechas aguentam, está na hora dos artistas se despedirem. Ainda existem muitos obstáculos para aqueles que vivem da arte circense no Brasil, mas o show tem que continuar. Portanto, quando as cortinas se fecham a alegria e satisfação bailam no ar, pois, no dia seguinte, elas sabem que irão se abrir mais uma vez.