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Por Malu Mões e Thaís Chaves Edição #62

Meu ponto é o próximo!

Andar de ônibus em uma cidade como São Paulo é ter a certeza de que há diferentes histórias que se cruzam sem parar nas frenéticas vias da metrópole

–Boa tarde! – cumprimenta o motorista com um sotaque nordestino puxado.

O aceno corriqueiro do condutor anônimo avisa que você está embarcando em um ônibus da linha 175P (Santana – Ana Rosa) que, diariamente, percorre importantes ruas e avenidas de São Paulo. Partindo do lado da Estação Santana do Metrô, na Zona Norte, o coletivo passa pela Casa Verde, atravessa o rio Tietê até a Barra Funda, onde um grande número de passageiros embarca, incluindo uma jovem negra dos cabelos cor-de-rosa. Jaqueline Sales, de 30 anos, faz esse trajeto e atravessa diariamente a cidade: parte de Arthur Alvim, na Zona Leste, onde mora, em direção a seu trabalho, um salão de beleza em Perdizes, Zona Oeste da cidade. A falta de iniciativa dos passageiros em oferecer lugar àqueles que necessitam é o que mais incomoda a jovem. Sales, sentada no banco preferencial, explica que está grávida de sete meses e durante esse período apenas duas pessoas ofereceram-lhe o lugar. “Mas eu também não costumo pedir. Trabalho o dia inteiro em pé, então já estou acostumada”, contou sem muitos alardes. Porém, o que a jovem não sabe é que dos 128 assentos de um micro-ônibus ou 155 dos articulados, 22 assentos, ou 56 assentos, respectivamente, são reservados como preferenciais.

O ônibus continua sua trajetória pela Rua Cardoso de Almeida, local onde Sales trabalha. Então, o 175P segue pela Avenida Dr. Arnaldo, até chegar na Avenida Paulista, quando um jovem de cabelos cacheados que se escondia em uma touca azul e um headphone prateado entra timidamente no ônibus. Guilherme Casagrande tem 24 anos e trancou a faculdade de Ciências da Computação no 5º semestre e culpa, inclusive, a dificuldade de locomoção em pontos extremos da cidade como uma das razões por não ter conseguido prosseguir com o curso.“Entre trabalhar para me sustentar e fazer faculdade, o tempo que se passa no transporte entre esses destinos é muito grande, tira meu tempo de estudo que é precioso em um curso como o que eu fazia”, conta o moço, sem esperanças, afirmando ter vários colegas que passam por situações parecidas nos malabarismos entre estudos, trabalho e locomoção.

“Até é vazio, então dá para ver série no celular tranquilamente”, conta espontaneamente outro rapaz ao embarcar no ônibus. O coletivo que pega até a Estação Butantã, entretanto, costuma ser cheio e, com o trânsito, leva de quarenta a cinquenta minutos, para chegar ao metrô e ainda o rapaz atravessa mais quinze estações e uma baldeação. Guilherme, antes de sofrer uma lesão, usava a bicicleta como meio de transporte de casa até o trabalho. Se para muitos, há mais conveniência em usar o transporte público do que pedalar os 20 km de ida e 20 km de volta que ligam o jovem da Rodovia Raposo Tavares, na Zona Oeste, até às imediações da Estação Santa Cruz, na Zona Sul, para ele, há vantagens, já que gasta com o trajeto 30 minutos a mais do que se o percorresse de bicicleta.

O rapaz critica a falta de interação do transporte público com os ciclistas. Diz nunca ter conseguido pegar o ônibus estando com a bike. “No metrô há horários, estações e vagões específicos para isso, todos ainda são muito limitados”, ele aponta. A CPTM é a que mais oferece integração entre os transportes, tendo mais bicicletários, sendo 19 estações comparadas às 15 do Metrô, que é bastante limitado, que garantiu apenas a possibilidade de usar a bicicleta aos sábados, a partir das 14hs; nos dias úteis a partir das 20h30; e o dia todo aos domingos e feriados. Guilherme deixa, então, o 175P transportá-lo até o ponto final.

Entre trabalhar para me sustentar e fazer faculdade, o tempo que se passa no transporte entre esses destinos é muito grande, tira meu tempo de estudo que é precioso em um curso como o que eu fazia – Guilherme Casagrande, Técnico de tecnologia em informação

Outra linha com trajeto pela Avenida Paulista é a 669A. O ônibus parte lotado do agitado Terminal Santo Amaro, na Zona Sul. O trajeto passa pela estação Largo 13 (Linha 5 – Lilás do Metrô), percorrendo a Avenida Adolfo Pinheiro até ingressar na Avenida Santo Amaro, via que compõe a maior parte da trajetória da linha.

Dalva Rodrigues passa nove horas de seu dia sentada nesse ônibus como cobradora. Os 21 quilômetros que compõem a linha não são um grande problema, segundo ela, mesmo em horários de pico de seu turno que é das 6 às 15 horas. Mas se hoje o maior de seus problemas é aguentar o mau-humor de seus passageiros com o trânsito constante, não foi bem assim quando ela começou a trabalhar como cobradora, 12 anos atrás, recém-chegada de Salvador (BA), sua terra-natal. Ela conta que, logo em seus primeiros meses na profissão, sofreu cinco assaltos à mão-armada, todos em um período de dois meses.

Tranquila, no entanto, ao relatar os casos, Rodrigues recorda que no primeiro assalto, os rapazes carregavam um revólver. “Se era de brinquedo ou não, não sei”. Mas que para intimidá-la a dar todo o dinheiro, os ladrões lhe agarraram os peitos. “Todo mundo sabia que naquela região tinha uma galera assim”, diz a cobradora ao explicar que a situação acontecia no mesmo local e sempre era na parte da noite. Quando questionada se fica tensa toda vez que faz um turno à noite, com traumas das situações, ela responde sem alardes que o medo acabou.

Se essa foi a saudação que a cidade lhe deu, não é de se esperar que Dalva Rodrigues não seja a maior fã da metrópole. “É uma cidade só para trabalhar”, ela critica. Mas, apesar do comentário, Rodrigues possui um sonho que envolve as ruas paulistanas. Seja como uma forma de ganhar independência ou de ter mais controle da situação após o que lhe ocorreu, ela conta – com os olhos brilhando – que quer logo tirar sua carteira de motorista. “Às vezes as mulheres dirigem melhor do que os homens. Acho chique mulher que dirige. Quero ser uma”, comenta.

Mesmo não percorrendo o usual trajeto das periferias aos centros nos horários de pico, são muitos os ônibus que, além de partirem da Estação Santo Amaro, também recebem uma enorme quantidade de passageiros. Esse é o caso da Terezinha de Souza de Oliveira, de 63 anos, que faz diariamente o trajeto do Ipiranga (Zona Sul) ao Brooklin (Zona Oeste), sendo sua maior parte na linha 467A-10 (Ipiranga – Santo Amaro). Algumas pessoas não se importam com as grosserias diárias que ocorrem na maior parte do tempo nos ônibus paulistanos, mas ela não é uma delas. Dona Terezinha faz questão de reclamar da ausência de empatia no transporte, “meu hábito no ônibus é esse. ‘Bom dia, motorista’, ‘bom dia, cobrador’, peço licença, sabe? ”.

Segundo ela, o pior dia para se andar de ônibus pela cidade é a sexta-feira, em que todo mundo quer sair antes do trabalho para aproveitar o final de semana, e o melhor dia é o sábado. “Ele até demora pra vir, mas quando vem, é rapidinho”, conta dona Terezinha que, por ser empregada doméstica, trabalha aos finais de semana e em muitos feriados. Por causa desse grande vínculo com o trabalho, ela explica que não tem muito tempo para o lazer. Ela, que é cearense de Fortaleza, elogia sua terra natal por sua facilidade de mobilidade e diversidade de passeios gratuitos. Enquanto isso, admite que o Metrô é uma alternativa de que gosta, mas afirma não utilizá-lo muito porque não passa nos trajetos que faz.

No entanto, dona Terezinha comenta que ficou feliz, ao passar a usar este ônibus, porque ainda não conhecia o Aeroporto (de Congonhas), na Zona Sul. “Eu passo e fico…”, diz ela, sem completar a frase, com a expressão de quem se lembrava da primeira vez que viu os aviões ali pousarem e decolarem. Com os olhos ainda emocionados, lembra-se de 17 de julho de 2007. “Fez 10 anos do acidente que aconteceu”, referindo-se ao desastre que abalou a nação, do voo TAM 3054 que perdeu o controle ao tentar pousar em Congonhas e matou os 199 passageiros a bordo. Ao ser questionada se não tinha medo de passar ali, com os aviões tão pertinho, ela afirma com serenidade no rosto: “Não, eu ‘tô’ olhando bem que é pra mim (sic) tomar coragem que no final do ano é minha vez”.

Entre percursos, paradas e sonhos, torna-se evidente as singulares histórias de vida de cada passageiro e de como muitas delas se encontram, seja na relação afetiva com os locais que diariamente transitam ou como o que representa para cada uma dessas personagens transitar pelas ruas da metrópole. O tempo urge. A cidade também.

– Ô motorista, meu ponto é o próximo!