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Por Bruna Anielle, Giulia Poltronieri, Isabella Wassere Larissa Rioja Edição #62

O direito de parir

Sem legislação específica sobre o assunto no País, mulheres brasileiras sofrem com a violência obstétrica

“O médico colocou uma sonda na minha uretra, porque disse que eu havia sofrido uma laceração. O instrumento, nesses casos, é usado por 24 horas por causa do risco de infecção, mas em mim ele deixou por cinco dias”, conta a advogada Ruth Rodrigues sobre sua experiência de parto em um hospital particular de Brasília. Ela não está sozinha: uma entre quatro mulheres sofre violência obstétrica no Brasil, segundo pesquisa feita pela Fundação Perseu Abramo no ano de 2010. Trata-se de uma agressão física ou verbal cometida por profissionais de saúde contra mulheres durante o período gestacional, o parto ou o pós-parto.

As ocorrências vão do estímulo à gestante a optar pela cesárea sem necessidade comprovada para o procedimento até negar o atendimento médico a mulheres que sofreram um aborto espontâneo ou induzido. No país, ainda não existe tipificação para esse tipo de crime na legislação vigente, o que contribui para a sua recorrência e desconhecimento. “Os médicos são vistos como quase deuses, por isso muitas mulheres têm dificuldade de entender a violência. Elas pensam: ‘Mas ele falou que era assim, estudou para isso’”, afirma Giovanna Balogh, doula e autora do site Mães de Peito, criado para dar apoio a mulheres que passam por dificuldades no período gestacional e durante os primeiros anos da maternidade.

A pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2014, aponta o peso da opinião médica e a falta de interesse desse profissional pelo parto natural como motivo da desinformação das mães e pais sobre o tema, podendo aumentar o risco de procedimentos desnecessários e de perigos para a gestante. O Brasil é líder mundial em cesáreas com quase 90% dos partos cesarianos em hospitais particulares enquanto a recomendação é 15%, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS). “Para alguns, o parto é visto como doença. Perdeu-se a consciência de que é um acontecimento normal do corpo e que assim deve ser tratado”, conta Ruth Rodrigues, que fez uma especialização jurídica em violência obstétrica depois que foi vítima da agressão.

“Os planos de saúde pagam uma merreca para os obstetras, que ganham entre 300 e 400 reais por parto. Além disso, eles não querem ser surpreendidos pelo compromisso de realizar um parto na noite de Ano Novo, por exemplo. É mais conveniente marcar todas as cesárias em um único dia e quando desejarem”, afirma Giovanna Balogh. Ela acrescenta que, em São Paulo, a diferença de valores entre parto normal e cesariana é mínima ou inexistente, tanto na rede pública quanto na privada. Assim, um profissional de saúde recebe quase a mesma quantia para fazer a cirurgia, que dura cerca de três horas, e um parto normal, que pode passar de 12 horas.

Mas, o parto por cirurgia pode salvar vidas se prescrito corretamente. “Se a criança defecar na bolsa amniótica, por exemplo, indica sofrimento fetal e, por isso, a cesariana deve ser feita com urgência. A mulher tem que ser sempre monitorada para poder ser encaminhada ao centro cirúrgico se necessário”, esclarece a pediatra Cristina Pismel. O grande problema no quadro de partos brasileiros é o excesso do número de cirurgias, que extrapola o recomendável. “Ninguém é menos mãe por passar por uma cesariana. A gente não está discutindo nível de maternidade, mas uma questão de saúde pública. No Brasil, a diferença é gritante”, acrescenta Giovanna Balogh.

Diante desse grande número de cesáreas e do crescimento de movimentos a favor do parto natural, novas regras do Conselho Federal de Medicina foram estabelecidas em 2015 com o objetivo de reduzir essas intervenções cirúrgicas desnecessárias. Médicos só poderão realizar cesarianas agendadas a pedido da gestante a partir da 39ª semana de gestação. Nesse caso, elas devem assinar um termo de consentimento em que afirmam que estão cientes de todos os riscos dessa decisão.

Para além do parto

A violência obstétrica não se resume ao momento do parto. Ao contar sobre sua segunda gravidez, Ruth Rodrigues lembra que, apesar de ter realizado o sonho de ter sua filha em casa, com a supervisão e o auxílio de uma doula – assistente de parto, sem necessariamente formação médica –, precisou ir a um hospital particular em Brasília, onde mora, para retirar a placenta. No centro cirúrgico, a lei do acompanhante foi violada, pois não permitiram que sua irmã entrasse para acompanhar o procedimento. Além de ter sido obrigada pelo cirurgião a permanecer com a sonda por cinco dias, a advogada foi agredida verbalmente por ele. “Quando o médico me perguntou sobre o trabalho de parto e eu contei a ele, tive que ouvir ‘essas mulheres inventam de fazer parto domiciliar e a gente que tem que resolver as merdas que acontecem’ e ‘se tivesse feito um parto decente, não estaria assim’. Eu me senti completamente desrespeitada!”, conta.

Rodrigues acredita que casos como o dela acontecem porque os médicos subjugam as mulheres e seguem um protocolo desnecessário e desatualizado do hospital. Ao questionar o motivo de não poder dar banho em sua filha, o que era feito apenas pelas enfermeiras, recebeu como resposta de uma delas: “Mãe, a partir do momento que você entra aqui, você vira propriedade do hospital”.

A ginecologista e obstetra Otília Revollo Alarcon explica que determinados procedimentos comumente realizados no parto e são agressivos ao corpo da mulher podem ser evitados na maioria dos casos. Exemplos disso são a episiotomia, corte feito no período da pré-expulsão para poder ter uma maior abertura para a saída do bebê e evitar rupturas na região do períneo, e o uso de soro com ocitocina, medicamento que acelera as contrações uterinas. “Essas práticas são muito antigas. Hoje já se sabe que elas só são necessárias em casos extremos, quando o corpo da mulher não está preparado para parir em virtude de alguma outra complicação mais séria”. A médica destaca também que eles podem causar graves consequências à mãe ou ao bebê. “A Manobra de Kristeller, por exemplo, na qual é realizada uma pressão na região abdominal da mulher para facilitar e acelerar a expulsão do bebê, é extremamente perigosa. Pode causar dificuldades fecais e urinárias na gestante e muitos traumas na criança”, afirma.

Hoje, três anos após ter sofrido violência obstétrica, a advogada Ruth Rodrigues utilizou os conhecimentos obtidos no curso de capacitação jurídica e conseguiu dar entrada no processo contra os médicos e o hospital envolvidos no seu caso. “A violência obstétrica não tem tipificação no código penal; não é considerada um crime no Brasil. Mas, mesmo assim, ela deve ser denunciada. Casos desse tipo devem chegar aos juízes para que ganhem visibilidade e passem a ser entendidos como crime”.

Segundo o Ministério Público Federal, a vítima deve realizar primeiro uma denúncia no CRM, com uma cópia integral do prontuário médico digitalizado, que é direito de qualquer cidadão e deve ser guardado pelo hospital por no mínimo 10 anos. Por não existir uma tipificação para esse tipo de crime, pode ser enquadrado em processos como danos morais, violência psicológica, lesão corporal ou ameaça e, por isso, a punição varia muito de acordo com o julgamento de cada caso.

“No estado de Santa Catarina foi sancionado em fevereiro de 2017 um projeto de lei (Lei 17.097/2017), que tipifica a violência obstétrica, mas é uma lei estadual. Ainda precisa ser expandida para todo o Brasil”, afirma a advogada. Para Giovanna Balogh, acesso a informação também é um dos caminhos para lutar contra a crescente onda de violência obstétrica. “A mulherada precisa se informar e ir atrás dos seus direitos. Isso é o que eu prego bastante e tento fazer no meu site: dar informação para a mulher”.

A ONG Artemis, comprometida com a prevenção e a erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres, disponibiliza em seu site uma seção dedicada somente a esse tipo de ocorrência, com espaço para orientar a denúncia e escrever o próprio relato. Ela também criou o “kit judiciário”, um relatório com todas as informações básicas sobre esse tipo de violência, que foi enviado para 101 instituições-chave do judiciário brasileiro, com o objetivo de informar e conscientizar defensores, juízes, procuradores e advogados a respeito do tema e fornecer instrumento para o melhor julgamento das ações que receberem.