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Por Giovanna Galvani Edição #62

Comprovadamente, a caminho da falência

Políticas de cortes de gastos do governo federal geram a pior crise enfrentada pela ciência brasileira em muitas décadas

Carta para o Presidente da República. Teor altamente formal para que o peso simbólico do papel impresso seja sentido. As assinaturas elevam consideravelmente a importância do conteúdo: são ganhadores do Prêmio Nobel, o máximo reconhecimento mundial por feitos em diversos campos sociais, científicos, econômicos e de importância para a sociedade no geral. Nesse papel, 23 cientistas emprestaram seus importantes sobrenomes para contatarem Michel Temer em setembro de 2017. Período no qual o cenário científico brasileiro já estava sentindo efeitos que podem ser irremediáveis: o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) obteve, em março, um congelamento de mais de dois bilhões de reais em relação ao que havia sido originalmente proposto para 2017 e se viu o menor orçamento da pasta em 12 anos. Desde 2014, os cortes têm sido frequentes e cada vez maiores para a área, sempre baseados na justificativa de que o governo federal deve manter o equilíbrio fiscal. Após a aprovação da PEC 55 (ou PEC do Teto dos Gastos Públicos) em dezembro de 2016, que limitou os gastos federais a aumentos no nível da inflação por 20 anos, o receio é que a precarização continue avançando até a falência do desenvolvimento científico de qualidade no Brasil.

Uma amostragem do problema está em como a Revista Nature, a mais importante publicação de divulgação científica do mundo, pautou o setor brasileiro em abril de 2017: pela “paralisia” da ciência, e não mais por trabalhos publicados por pesquisadores do Brasil. A matéria destaca também a chamada “fuga de cérebros”, termo utilizado para cientistas que aceitam oportunidades de pesquisa fora do país. “São pessoas formadas por nós, na sua maioria com verba pública, e que estão sendo impossibilitadas de contribuir para o avanço da nossa sociedade”, afirma Adriana Melibeu, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde chefia o laboratório de Neurobiologia do Desenvolvimento.

Jennifer Nielsen, bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na observação da órbita de meteoros pela Universidade do Vale do Paraíba (Univap), também relata um clima de descrença entre seus amigos pesquisadores. “Tive colegas que deixaram a iniciação científica porque não receberam uma bolsa”, conta. “Eu sempre quis ir para fora, e o cenário atual só me deixa com mais vontade”.
Órgãos como o CNPq se encontram em situação preocupante pelo efeito cascata inevitavelmente gerado em situações como essa. Corta-se o orçamento, cortam-se projetos. De acordo com dados do site da instituição, que tem como principal objetivo incentivar e subsidiar a formação de pesquisadores brasileiros, a queda no valor de investimento a auxílio à pesquisa, bolsas no exterior e bolsas no país em relação a 2016 ultrapassa 600 milhões de reais.

Em setembro de 2017, o CNPq declarou que não teria recursos para pagar mais bolsas e projetos se o orçamento restante não fosse descontingenciado imediatamente pelo governo federal, situação que prejudicaria mais de 100 mil bolsistas e pesquisadores brasileiros.
O Novo Regime Fiscal instituiu limites para as despesas de cada um dos Poderes, do Ministério Público e da Defensoria Pública da União. Henrique Meirelles, ministro da Fazenda, em entrevista ao El País, explica a real necessidade da proposta. “Não é um plano puramente fiscal. É impossível continuar economicamente no Brasil gastando muito mais do que podemos pagar”.

Lógica imediatista

A comunidade científica considera um erro e um atraso os cortes de gastos devido à crise econômica. “Todo país possui investimentos científicos em época de crise, porque a partir disso surgem novas propostas e novas resoluções para o problema. Você acaba gerando um produto sem o custo de adquiri-lo, comprar tecnologia é caríssimo”, afirma Wesley Luzetti, pós-doutorando no Departamento de Parasitologia da Universidade de São Paulo.

Como um dos maiores exemplos para o caso, está a Coréia do Sul. Seu investimento foi de mais de 60,5 bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento em 2014 – o maior do mundo. Para o futuro, o país pretende investir ainda mais nas chamadas “ciências básicas”, aquelas que se baseiam na aquisição de novos conhecimentos e desenvolvimento de teorias.

No cenário nacional, a ciência básica acaba por ser a mais prejudicada na lógica imediatista do retorno financeiro. “É uma área que acrescenta às outras, mas não de maneira óbvia – logo, não recebe um dinheiro óbvio”, comenta Luzetti. Para Adriana Melibeu, “a realidade é que a qualidade de vida de uma sociedade, assim como o seu avanço, depende da Ciência”. Como exemplo, ela cita a adição de iodo ao sal de cozinha – simples solução de saúde pública que evita problemas no desenvolvimento fetal e doenças como o bócio.

A guinada necessária

Para os pesquisadores, o país precisa seguir necessariamente pela via contrária na qual está insistindo. Luzetti, que acompanhou o processo inicial do projeto Ciências sem Fronteiras em 2011, relata que aquele foi o “o melhor período de verbas destinadas às pesquisas do Brasil”. Na época, o pesquisador estava cursando parte do doutorado no renomado Massachusetts Institute of Technology (MIT), universidade eleita como a melhor do mundo em 2017. Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), ele conseguiu comparar a produção de cientistas brasileiros com aquela feita pelos norte-americanos: “Estávamos no mesmo nível acadêmico e o financiamento recebido era justo no mesmo nível que os Estados Unidos ofereciam para seus alunos”. Hoje, no entanto, ele percebe sinais de desânimo nos alunos que orienta na Universidade de São Paulo. “Tenho uma aluna terminando o TCC do curso de Biomedicina que vai para a Alemanha. Ela é muito boa e está fugindo muito cedo”, diz.

Atualmente, projetos de relevância internacional como o Sirius, futuro acelerador de partículas que gerará a luz de síncroton, com utilização da engenharia cívil a medicina, líder do mundo e considerado a maior ambição da ciência brasileira até então, correm grandes riscos de verem seus enormes investimentos parados no tempo. O Centro Nacional em Pesquisas e Materiais (Cnpem), conglomerado de quatro importantes laboratórios nacionais – no qual está incluso o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, responsável pelo Sirius -, sobreviveu a 2017 com um orçamento abaixo do necessário para fechar suas contas e o medo do contínuo contingenciamento que os afetou no ano passado.

Com a aprovação da PEC 55, o receio é que a precarização continue avançando até a falência do desenvolvimento científico de qualidade no Brasil. Para Melibeu, um mantra das manifestações do setor contra a lógica governamental é: “se vocês pensam que a pesquisa é cara, experimentem a doença”. Para o presidente da República, no entanto, o tópico não parece ser profundamente preocupante.