Sem aulas desde março, educação no Brasil lida com a precariedade do acesso à internet, problemas já existentes e o futuro pós-pandemia
O repórter é o primeiro a entrar na sala do Zoom. Confere a imagem, o gravador de voz e seu microfone. Tudo certo. O link é enviado aos convidados que estão a muitos quilômetros de distância. Em seguida, eles estão online: uma diretora de escola municipal de Gravataí no Rio Grande do Sul, um professor da rede pública do mesmo município e um estudante de pedagogia em Porto Alegre. Por enquanto, câmeras ligadas e microfones mutados. A reunião irá discutir os problemas enfrentados pela educação antes, durante e depois da pandemia do coronavírus. Em março de 2020, cerca de 1,5 bilhão de estudantes ao redor do mundo ficaram sem aulas presenciais, segundo a UNESCO. No Brasil, com as escolas fechadas desde o dia 16 do mesmo mês, a desigualdade educacional ficou ainda mais evidente, tendo em vista a precariedade de acesso a internet por parte dos alunos e professores.
A pandemia e o acesso a internet
“Foi um processo extremamente rápido e traumático”, diz Irene Nasare Kirst ao explicar a transição do ensino presencial para o remoto. A diretora da Escola Municipal Vânius Abílio dos Santos sabe que o processo foi rápido, tendo em vista que recebeu a notícia no dia 15 de março e dia 18 a escola já estava fechada. O trauma que ela se refere corresponde ao fato de que o ensino remoto só foi regularizado no município de Gravataí em junho, e “neste período todos os alunos da rede pública ficaram sem atividades remotas”, diz.
O início tardio das aulas à distância trouxe dúvidas sobre o aproveitamento do ano letivo, bem como se haveria reprovações dos alunos. Além disso, o abalo causado pela pandemia aumentou ainda mais pelo sentimento de abandono. “Nós não temos ferramentas como os colegas do estado, estamos nos virando com recursos próprios. É a internet do professor, o whatsapp do professor”, afirma Irene. Na esfera federal não houve um projeto de articulação com as secretarias municipais e estaduais para zelar pela educação no período de quarentena. “No Brasil não existe um projeto pré-estabelecido de fato. As orientações da Secretaria de Educação mudam toda hora”, relata a diretora.
O estudante de pedagogia da UniRitter, Samuel Hallal, de 20 anos, relata como essa situação o impactou. “Não houve muita conversa. A minha faculdade fechou durante um bom período e pouco se falou. Foi muito confuso”, diz o estudante. Antes que Samuel pudesse continuar, Irene comentou: “O processo é sempre confuso e a gente vai se acostumando”, reforçando que a situação é a mesma desde que começou a dar aulas há mais de 30 anos.
A fala da diretora, que é uma das fundadoras do sindicato dos professores em Gravataí, ganha respaldo na voz do professor de história Pedro Cardoso. “A pandemia só escancarou e exacerbou os problemas de estrutura, mas não só a física, também a estrutura organizacional da educação”, diz o professor de 31 anos, da Escola Áurea Celi Barbosa, também de Gravataí.
Ele lembra que os professores da rede pública tem que se preocupar com outras coisas no ensino remoto. “A gente tem que pensar em uma maneira de atender pessoas que não tem estrutura nenhuma. Eu adoraria gravar um vídeo e mandar para os meus alunos, mas qual é o tamanho do pacote de dados deles? Ele tem acesso a internet?”, comenta.
Em 2019, a pesquisa TIC Domicílios, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), mostrou que 28% dos lares brasileiros não tinham acesso à internet. Entre os alunos da rede pública 39% não tinham computador ou tablet em casa. “Estudar pelo celular é uma grande desvantagem. Quem acessa a rede pública de educação é porque não tem condições. Às vezes tem família que possui só um telefone. O aluno não vai permanecer na escola se ele tiver algum tipo de gasto com aparelho ou internet”, afirma Pedro.
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Problemas preexistentes
O primeiro tópico é a evasão escolar, e Irene apresenta dados do EJA (Educação para Jovens e Adultos) em sua escola: “Em março tínhamos 190 alunos matriculados, mas apenas 72 terminaram o semestre com alguma atividade entregue. O resto nós perdemos no caminho”, diz a diretora.
Em 2018, 3,5 milhões de alunos de escolas públicas municipais e estaduais no Brasil foram reprovados ou abandonaram os estudos, segundo a UNICEF. Este número representa 7% de matrículas no país. “Nós temos uma escola muito conteudista. Ela precisa que você passe no vestibular e é muito focada no mercado de trabalho”, opina Samuel.
Na tela ao lado, Pedro discorda: “Ela de certa maneira é conteudista, mas esse direcionamento pro mercado de trabalho eu já não vejo mais”, diz o professor. “O que eu vejo é um esvaziamento do sentido da escola. E muitas vezes os professores ficam perdidos, ele tem que trabalhar conforme LDB (Lei de Diretrizes Base da Educação) tem que entregar tudo conforme documentação. Isso também engessa um pouco o trabalho.”
Irene já esperava o aumento da evasão escolar. E nesse sentido, a diretora reforça que a privação do espaço físico da escola não só tira o incentivo da continuidade no estudo, como também traz outras preocupações. “O isolamento social fez aumentar casos de violência física e sexual. Além disso, aqui na escola, nos já tínhamos preocupações com jovens que tentaram cometer suicídio e que agora para conseguir notícias é difícil, então tem que ter fé”, diz Irene.
A educação no pós-pandemia
A adaptação a este novo modo de dar aula não se mostrou simples, segundo Pedro. “Ter que falar para uma câmera de uma hora para outra e ainda por cima não ver os alunos, é algo que nenhum professor se preparou. Nunca houve uma formação direcionada ao ensino à distância”, relata o professor que todos os dias ajuda algum colega a mexer em programas como Word e PowerPoint.
Inexperiência com o uso do computador é algo latente na escola de Irene. “Alguns professores de mais idade demoram às vezes 30 minutos para conseguir se conectar e entrar no sistema”, diz à diretora. “Aqui em Gravataí, quando se investe em educação é de uma maneira desleixada. Há 15 anos se iniciou um processo de construção de salas de informática nas escolas municipais, mas não houve seguimento no investimento. Hoje está tudo sucateado, nós temos computadores que não têm nem acesso à internet”, complementa.
A migração para o ensino remoto também acentuou a desvalorização da carreira. Antes da pandemia, a pesquisa Profissão Docente relatou que apenas 21% dos professores de educação básica estão satisfeitos com o salário recebido. “Eu vejo com muita dificuldade o futuro do professor. Tu tem medo até de fazer uma piada em aula”, diz Pedro mencionando o projeto Escola Sem Partido.
Samuel, que acompanhava a conversa em silêncio há algum tempo, habilita seu microfone para se manifestar contra a ideia de doutrinação por parte dos professores: “Acho que o papel do professor é continuar lutando para que a gente consiga ensinar e tornar um ser humano melhor. Se não, a gente é só um transmissor de conteúdo”, o estudante é interpelado por Irene.
“Por isso que o problema não é a escola ser conteudista Samuel. Ela até tenta, mas a perspectiva de algumas comunidades não é fazer o vestibular. É ter o que comer no dia seguinte”, afirma a diretora. “A escola funciona como uma caixa de ressonância das angústias de crianças e adolescentes”, completa.