Sem as atividades presenciais, eles relatam como o isolamento social os impacta
Até meados de março, Samantha Valle, de 11 anos, seguia uma rotina bastante agitada. Acordava cedo, pegava o ônibus acompanhada da mãe, Elisangela, e passava o dia na escola Profª Botyra Camorim Gatti, mantida pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Mogi das Cruzes. Ela tem Síndrome de Down e, antes da suspensão das atividades presenciais em razão da pandemia de coronavírus, praticava ginástica de solo, dança e jogos recreativos, estudava música e arte e participava do “Vencendo as Diferenças”, projeto desenvolvido pela Apae com o intuito de promover a inclusão social por meio dos esportes.
“Nós não ficávamos paradas. Eu sempre procurei deixar a Samantha ativa, porque ela aprende com tudo. Ela era apaixonada pelas aulas, por isso sente muita falta de ir à escola, de ter contato com as professoras e de brincar com os amigos”, conta Elisangela.
Com a determinação do isolamento social, a mãe, que é revendedora de cosméticos, precisa se desdobrar para conseguir conciliar o trabalho, as tarefas domésticas e os cuidados com a filha. Para ela, preencher a lacuna deixada pela interrupção do ensino presencial e, assim, garantir o aprendizado de Samantha dentro de casa é um desafio, mesmo com a transferência das atividades escolares para o meio virtual, já que é preciso auxiliá-la no manuseio dos equipamentos e manter seu interesse e concentração nas aulas a todo momento. “Às vezes, ela quer a minha atenção, e eu não posso dar, porque ou estou atendendo uma cliente ou estou fazendo um pedido na distribuidora pelo celular”, desabafa.
O conteúdo das aulas é enviado diariamente pelos profissionais da escola. Assim que a filha termina os exercícios, a Elisangela registra o resultado da atividade por fotografia ou vídeo, que são posteriormente enviados aos professores para acompanharem mais de perto a evolução dos alunos. Nesse processo de aprendizagem, a mãe confessa que muitas vezes precisa se reinventar: “Fazemos as atividades conforme dá. Aqui, quando não temos os materiais necessários, adaptamos com os objetos de casa”.
A família do Renan Tadashi Hashimoto, de 17 anos, também precisou ajustar a rotina para o contexto do ensino remoto. “Antes da pandemia, ele ia todos os dias a uma escola em São Paulo, a Pipa, e duas vezes por semana a outra em Mogi das Cruzes, a EMESP. Com o isolamento, ele parou de ir às duas escolas, mas a de São Paulo oferece aula online diariamente, e a de Mogi envia atividades para fazer em casa”, explica Amanda Tiemi Hashimoto, irmã mais velha do Renan, que tem autismo.
Seus pais também enviam aos educadores vídeos e fotografias dos exercícios depois de prontos. “São atividades como reconhecimento ao próximo, em saber quem é o colega, escrever o nome um do outro, os números, atividades com tinta, giz de cera, canetinhas, entre outras coisas”, comenta ela.
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Na casa da Amanda, apesar da colaboração de todos para o aprendizado do Renan, ainda é difícil mantê-lo centrado nas tarefas escolares, justamente por serem conteúdos virtuais. “O meu irmão acaba ficando um pouco confuso e não sabe se é aula ou apenas uma chamada de vídeo, então ele não consegue prestar muita atenção”, observa. Além disso, ela pontua que o ambiente doméstico já é em si um fator de distração. “Muitas vezes, meu irmão não quer fazer as atividades direito, porque tem muita tentação em casa: é a televisão, a bicicleta, o celular…”, detalha.
Ainda que a dificuldade em fazer com que as crianças acompanhem as aulas remotas não se limite apenas aos pais de alunos com deficiência, o desafio é maior para os familiares de alunos com Transtorno do Espectro do Autismo, Síndrome de Down, deficiência visual, auditiva, intelectual ou outras condições especiais. Isso porque os efeitos do distanciamento recaem de maneiras e níveis diferentes em cada indivíduo, a depender de suas condições físicas, psíquicas e sociais.
“O isolamento social causa uma desorganização sensorial e psicológica, especialmente nas crianças, como dificuldades de concentração, irritabilidade, medo, inquietação, tédio, sensação de solidão, alterações no padrão de sono, alimentação, até perdas motoras”, afirma a psicóloga e neuropsicóloga Andreza Bento Leone Lara.
Ela acrescenta que lidar com tais reações emocionais e alterações comportamentais nem sempre é fácil para familiares ou cuidadores, que ficam sujeitos a níveis mais elevados de estresse e ansiedade nesse período. Apesar disso, Andreza destaca que é preciso levar em conta os benefícios da convivência provocada pela quarentena. “Também temos de considerar que esse é um momento para que os familiares ou cuidadores passem mais tempo com as crianças, proporcionando maior interação entre eles, o que permite que se conheçam melhor e reforcem um vínculo que é fundamental para o desenvolvimento infantil”.
No que se refere ao retorno às aulas presenciais, as escolas tanto da Samantha quanto do Renan propuseram uma votação para confirmar tal possibilidade com os pais dos alunos. A Elisangela concordou com a volta somente das atividades individuais, prevista para o início de outubro. Já os pais da Amanda optaram por seguir com o ensino remoto, uma vez que o Renan tem dificuldade de permanecer de máscara e costuma tocar nos objetos ao seu redor.
Seja neste ano ou no próximo, o fato é que o regresso dos alunos com deficiência às salas de aula deve ser feito com atenção redobrada. Segundo orientações da Academia Americana de Pediatria (AAP) publicadas no início de maio, crianças especiais podem ter mais dificuldade com os aspectos sociais e emocionais nas duas transições provocadas pela pandemia: tanto para fora do ambiente escolar quanto de volta a ele. Por isso, a AAP recomenda às instituições de ensino que desenvolvam um plano para garantir uma revisão de cada aluno com um Programa Educacional Individual que determine as necessidades de educação compensatória para ajustar o tempo de instrução perdido, bem como outros serviços relacionados.