O ensino remoto visto pelos olhos de professoras do ensino médio mostra que a experiência afeta os dois lados da tela
Era período de provas no Colégio Nossa Senhora do Rosário, instituição privada na Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo. No dia 16 de março, segunda-feira, todos os alunos do 6º ano do ensino fundamental II ao 3º do ensino médio teriam avaliação de português. Na sexta-feira, a escola fechava suas portas e começava a adaptação para o ensino remoto, que hoje é viabilizado pelas ferramentas do Google for Education.
“Em um fim de semana, nós tivemos que organizar toda a escola para uma geração que, assim como eu, é uma geração do giz”, afirma Angela Moreira, 54, professora de biologia e coordenadora pedagógica dos ensinos fundamental II e médio.
Desirée Azevedo, 65, também é educadora da rede particular e leciona gramática e redação no ensino médio do Colégio Friburgo, Zona Sul da capital paulista. “A escola ficou dois dias sem aula, nos quais ofereceu uma capacitação no Zoom e Google Classroom. Professores como eu, mais velhos, ficaram desesperados. Quase tive um infarto”, ela diz, rindo. “Mesmo com o treinamento, comecei a assistir vídeos, tutoriais e perguntar a amigos para aprender um pouco mais.”
A professora de história Anali Siscat, 65, relata: “Eu nunca vou esquecer esse dia. Eu estava dando aula felizona, mas não à parte do que estava acontecendo no mundo, logicamente”. Em 16 de março, na Escola Estadual Professor João Evangelista Costa, em Cidade Ademar, Zona Sul de São Paulo, ela e uma professora de física — que também faz parte do grupo de risco — foram chamadas pela diretora enquanto estavam em sala e mandadas para casa.
Na rede pública, as aulas estão sendo transmitidas pelo Centro de Mídias da Educação de São Paulo (CMSP). O conteúdo, que é igual para todas as escolas, é ministrado por professores selecionados pela Secretaria de Educação do Estado (Seduc). Ele pode ser acessado através do aplicativo — nessa plataforma, a internet é custeada pela Seduc —, ou pela TV Educação. Para os que não têm acesso a dispositivos digitais, são disponibilizadas apostilas impressas, que podem ser retiradas nas próprias escolas. Segundo dados, 39% dos estudantes de escolas públicas urbanas não têm computador ou tablet em casa. Já nas escolas particulares, o índice é de 9%.
“O abismo social entre o ensino remoto público e o privado é enorme. Não tem como fingir que não está mais vendo”, é o que diz a professora de matemática Bruna Queiroz, 32, diante do cenário pandêmico do país. Ela trabalha com jovens de ensino médio da Escola Estadual Maria Juvenal Homem de Mello, no Parque Grajaú, Zona Sul de São Paulo, onde estudou quando criança.
Ela conta que a instituição demorou vinte dias para realizar a transição para as plataformas online que estão utilizando. Além do CMSP, ela também usa o Google Classroom e o Google Meet, por onde os professores dão aulas ao vivo.
Mesmo reconhecendo a dificuldade do ensino remoto, a professora observa muita falta de vontade por parte dos estudantes, que pensam: “eu vou passar mesmo, então deixa do jeito que está!”. Bruna lamenta com um suspiro: “Eu entendo. O aluno não quer ficar cinco horas tendo um monte de aulas e fazer provas e atividades. Eu não consigo, imagina esses jovens!”.
Desirée também reconhece que, no ensino remoto, a dificuldade em se concentrar é maior, mas, com a obrigatoriedade que o Colégio Friburgo colocou de manter as câmeras abertas, fica evidente quem está prestando atenção e quem assiste à aula deitado. Já Bruna não tem essa possibilidade: “No Meet, eu me sinto dando aula para a parede. Eles não abrem a câmera, e eu fico falando ‘Pelo amor de Deus, tem alguém aí?!’”, desabafa.
No colégio de Angela, também não é obrigatório o uso da câmera. Mas o chat permanece aberto, o que já traz um grande conforto para a professora: “O simples fato de eles darem ‘bom dia’ e, ao final da aula, escreverem ‘obrigado, professora’ é uma forma afetiva de perceber que eles aceitam muito bem a nossa presença dentro de suas casas”.
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Muitos estudantes também estão abertos para que esse contato se mantenha além das aulas. Anali deixa seu WhatsApp aberto para dúvidas e desabafos. A professora de história diz que “isso me faz muito bem. Você acha que eu reclamo? Ligou pra mim, estou dentro, não importa o dia. Eu quero ajudá-los do jeito que eu posso, e eu só posso dessa maneira”.
Mesmo assim, Anali confessa: “Eu, que nunca pensei em me aposentar na vida, acho que não estou mais no meu momento”. Sua carga de trabalho tem aumentado desde o início da pandemia; além de intenso, é também solitário, o que desagrada a professora que adora abraçar, beijar e estar junto de seus alunos: “Na educação remota, você não cria vínculos. Eu acho que a educação tem a ver com vínculos, com o contato”.
Desirée teve sentimentos semelhantes. Admite que, ao se ver diante de tantas coisas desconhecidas, chegou a pensar: “acho que meu tempo acabou”. Em seu “cantinho de dar aula”, como ela chama, as paredes são brancas; e quanto mais tempo passava dentro daquele cômodo, se ouvia pensando “‘preciso mudar a cor desse quarto’, ‘não aguento mais essas cortinas’”.
A “quarentena” se tornou sete meses, e Desirée afirma que “nós [professores] tínhamos a responsabilidade de manter o curso para estes alunos”, mesmo com as dificuldades: “Preparar slides foi um desafio incrível. Eu aprendi a colocar animações nos PowerPoints e ‘babava’ com as minhas criações. ‘Uau, fui eu que fiz isso?’”, ela diz com uma indignação feliz. Mas mesmo com toda a tecnologia em mãos, a professora relata, com surpresa, que os jovens sentem falta da escola. “Tudo foi tirado de nós à força. 2020 foi um ano perdido”.
A mesma sensação também está em Bruna, cuja voz ao falar sobre o 3º ano do ensino médio transmite todo o peso carregado durante esses meses longe da escola. “Eu converso muito com eles, ajudo a arrecadar dinheiro para fazer uma formatura, porque é uma escola muito carente. A gente passa o ano inteiro trabalhando pra eles sonharem. Este ano… tudo perdido”.
“Tudo que nós pudermos fazer de melhor para eles, nós vamos fazer. Com certeza”, afirma Angela sobre o 3º ano. Ela afirma que esses alunos são a sua maior preocupação, já que não estarão mais no colégio em 2021 para recuperar o conteúdo. Diante disso, ela tem aumentado a grade de aula e, quando percebe que os jovens se sentem sufocados, recua na cobrança.
Angela diz que o colégio trabalha em parceria com os familiares, contando com uma equipe de apoio para ouvi-los e atender suas dificuldades. Muitos deles demonstram uma preocupação, devido ao volume de material que é dado aos alunos. “Nós sabíamos que isso era o comum. A família não”, explica. “Mas a partir do momento em que a sala de aula entra pro ambiente doméstico, aqueles que não participavam dela se assustam”.
Na perspectiva das professoras da rede pública, as famílias não sabem o que está realmente acontecendo. Segundo Bruna, “muitos pais e mães estão dizendo: ‘Apareceu na TV que mesmo quem não fizer nada vai passar, então está tudo resolvido!’”.
Entre janeiro e agosto deste ano, cerca de 12 mil alunos em São Paulo foram transferidos do ensino particular para o público. “Eles são simplesmente jogados no Estado para passar de ano e os pais não pagarem mensalidade”, desabafa Anali. “Imagina trabalhar com gente que você não conhece, e que também não te conhece. Eu não sei nada sobre eles, eu não sei como interagir”, diz a professora, em um misto de frustração e indignação.
Em umas aulas do ensino remoto, logo cedo, os alunos pediram para que Angela não compartilhasse sua tela e contasse até três. Foi o que ela fez. Ao final da contagem, toda a sala havia ligado as suas câmeras. “Eu fiquei muito emocionada. Foi até difícil dar aula depois disso”, brinca a professora, com um sorriso no rosto.
“Temos vinte estudantes em cada sala do 3º ano do médio e pelo menos dez já desistiram”. Bruna relata que quando passa pelo bairro onde a escola é localizada, encontra alguns de seus alunos por lá e observa que muitos estão trabalhando como pedreiros e pintores de parede. “Eles precisam. Um deles me disse: ‘Ou eu como ou eu estudo’”, conta, com uma compreensão dolorida.
“Você sente que está presa. Você tem disponibilidade, vontade de ajudar, mas não pode”, lamenta Anali. Um de seus alunos do 3º ano, de uma hora para outra, deixou de fazer todas as atividades propostas. O pai do garoto estava com coronavírus, internado no hospital de campanha do Anhembi.
Todos os dias, Anali perguntava como estava o pai. Até que ele veio a falecer. O jovem foi despejado de onde morava apenas com o pai e foi viver com uma tia. Desde então, o corpo docente da escola tem o auxiliado: “Nem que ele faça metade do que é proposto, isso já nos ajuda a avaliá-lo, para que ele consiga, pelo menos, um diploma no final”, explica Anali. Em um telefonema com o aluno, conta que ele estava aflito e chorava muito. “Eu falei: ‘Ai, meu Deus, se eu pudesse te abraçar, chegar perto de você, te ajudar de alguma maneira’. Mas eu não tinha como”.