Profissionais expõem vantagens e desvantagens das sessões virtuais, que ganharam muitos adeptos e vieram para ficar
“No primeiro momento, não deu nem tempo de pensar muito se a gente ia se adaptar ou não, porque os pacientes precisavam ser atendidos. Então, a gente foi do jeito que era possível”, conta a psicóloga Maria Lúcia Favarato sobre sua experiência com a terapia online. “Quando foram passando os meses, eu fiquei pensando mais nessa questão porque principalmente na abordagem que eu atendo, o setting terapêutico, estar na presença do paciente é muito valorizado. Como transportar isso para o mundo virtual?”, questiona a profissional, que segue a linha junguiana.
Após mais de um ano do início da pandemia de covid-19 no Brasil, que já atingiu a marca de 437 mil vítimas, ainda não há expectativa de melhora desse quadro. O isolamento social ainda é a principal medida para conter a propagação do vírus, fato que impede o retorno às atividades presenciais e que impõe a continuidade da migração e adaptação de diversas práticas para o universo online.
Dentro da psicologia, essa mudança do ambiente presencial para o virtual ocorreu após comunicado do Conselho Federal de Psicologia referente ao coronavírus, publicado em março de 2020. Em função da pandemia e da importância dos atendimentos para a saúde mental da população, o Conselho definiu que, durante os meses de março e abril, os psicólogos poderiam iniciar os trabalhos de terapia online logo após o cadastramento no site e-Psi. Antes, além do cadastro, os atendimentos só poderiam ocorrer depois da confirmação da plataforma, medida que se tornou desnecessária neste período.
Vantagens e desvantagens da terapia online
Na visão de muitos psicólogos, a terapia online apresenta inúmeras vantagens. Dentre elas, destaca-se o fato de não ser mais necessária a locomoção do paciente até o consultório para o atendimento. Segundo eles, o fato de não haver trânsito e imprevistos ao longo do trajeto, principalmente em cidades grandes, diminui os atrasos e as faltas nas sessões.
A psicóloga Fabiana Junqueira de Souza relata que teve um breve período de adaptação no ambiente virtual, que ganhou muitos adeptos. “Era estranho no começo, mas depois fluiu super bem. Tenho alguns pacientes loucos para voltar para o consultório, mas a grande maioria quer continuar no online. Dá um conforto estar em casa, não ter que passar pelo trânsito. E, quem não tinha tempo de fazer, agora está conseguindo”, diz a terapeuta, que também segue abordagem junguiana.
Porém, ainda existem muitos desafios a serem enfrentados. A falta de privacidade foi uma das dificuldades mais citadas entre os psicólogos entrevistados sobre a terapia online, visto que muitos pacientes não encontram em suas casas um local adequado para realizarem a sessão.
O principal medo é de estarem sendo ouvidos por outras pessoas com quem compartilham a casa. Isso faz com que muitos fiquem inquietos durante o atendimento, conferindo as portas e alterando o volume de sua voz. Além disso, muitos cancelam e marcam a consulta em outros horários, em momentos em que a casa estará mais vazia.
Adaptações na terapia online
A migração dos consultórios para as telas também gerou um novo obstáculo: compreender o paciente sem poder analisar sua linguagem corporal por completo. Segundo profissionais, elementos da atuação dos pacientes ao longo da sessão colaboravam para a identificação de mudanças comportamentais e agravamento de quadros clínicos.
Para muitos psicólogos, a perda desses elementos exigiu uma rápida adaptação e uma consequente busca por novas metodologias. Para isso, eles ressaltaram que foi necessário que tivessem uma atenção maior em outros aspectos e detalhes, como expressões faciais e tom e velocidade da voz dos pacientes.
“A gente aprende a ficar atento a algumas sutilezas que, talvez, no atendimento presencial não precisasse porque a gente tinha a informação de corpo todo. A gente podia ler o comportamento do indivíduo por inteiro, olhar para a postura, mudança de gesto, posição, expressão facial, que são informações importantes para entender as emoções e as relações que estão acontecendo ali”, ressalta Denis Roberto Zamignani, psicólogo especializado em análise de comportamento.
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Dentro da abordagem junguiana, observa-se a utilização de metodologias que não eram amplamente exploradas nas sessões presenciais, como trabalhos de relaxamento e conscientização corporal. Fabiana Junqueira também começou a utilizar mais recursos artísticos, como desenhos e escritas, além de focar na análise de sonhos do paciente.
Já na psicanálise, uma das características marcantes das sessões é o fato de não haver, necessariamente, contato visual entre paciente e psicólogo. Quando os atendimentos eram presenciais, o paciente podia escolher um local para ficar no consultório e se estaria olhando para o psicólogo ou não. No entanto, no formato online, essa possibilidade de escolha foi significativamente modificada.
“No setting terapêutico, de repente o paciente preferia um divã, porque eu não vou estar de frente para ele. Quando a gente fala de sessões de terapia online, esse olhar que não existia antes, agora precisa existir. Em outras abordagens, isso pode não ter tanto efeito por já ser usual um olhar para o outro”, adiciona a psicóloga Iara Ferreira.
De acordo com Adriana Severine, um importante aspecto da abordagem cognitivo-comportamental é a realização de tarefas de casa. Para a psicóloga, os pacientes começaram a ter mais tempo para fazerem essas lições agora que o atendimento é remoto, aumentando o rendimento das sessões.
Apesar de ter sido usada como uma alternativa temporária para o contexto de pandemia, os profissionais entrevistados apostam que a terapia online veio para ficar e fazer parte do pacote do “novo normal”. Ainda que muitos pacientes estejam ansiosos para retornar aos consultórios, os psicólogos afirmam que a maioria não deseja abrir mão das comodidades que a nova prática trouxe para o seu dia a dia.
Saúde mental na pandemia
A situação da pandemia no Brasil, marcada pelas crises sanitária, política e econômica, abalou uma extensa parcela dos brasileiros. Segundo psicólogos, houve um aumento significativo da procura por terapia, pois, de acordo com eles, muitas questões já existentes foram intensificados no período pandêmico.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) apontou que 59% de seus associados perceberam aumento de até 25% nas consultas com a pandemia. Divulgada em abril deste ano, uma pesquisa da Ipsos para o Fórum Econômico Mundial com 30 países mostrou que 53% dos entrevistados brasileiros tiveram piora em sua saúde mental desde março de 2020. O Brasil é o quinto país onde a saúde mental piorou mais, segundo o levantamento.
Ainda neste abril, o País atingiu sua pior marca de óbitos diários, que chegaram a 4.211. Assim, é possível observar outro aspecto comum entre os pacientes: a dificuldade de lidar com o luto.
“É o luto que não pode ser vivido, porque a pandemia acaba impedindo rituais, como velar o ente querido e fazer a sua última homenagem. Não poder fazer essa ritualização já traz um grande problema para a pessoa”, afirma Maria Lúcia Favarato.
De tabu a ‘mimimi’
A pandemia promoveu a ampliação de debates sobre a importância da saúde mental. Criou-se um espaço propício para a instrução da população sobre o assunto — tratado muitas vezes como tabu –, e uma esperança de quebrar antigos preconceitos e estigmas.
Segundo Denis Zamignani, “o fato de todo mundo estar sofrendo, lidando com perdas está fazendo com que as pessoas se abram mais para falar do seu sofrimento e reconhecer que estão sofrendo, precisando buscar ajuda e aceitar essa situação. Ao mesmo tempo, eu vejo um movimento oposto a esse que eu acho muito perigoso. Um discurso negacionista e muito insensível daquele que dirige a nossa nação, que trata com indiferença o sofrimento de 300 mil pessoas [número de mortes até a entrevista]. Temos uma parcela da população que está olhando com desdém para esse sofrimento e chamando de ‘mimimi’, e o nosso presidente está ajudando muito a construir isso”, afirma.