Carolina Patitucci analisa irregularidades no PL 5435/2020 e enxerga abertura para a proibição do aborto legal no Brasil
Durante o mês de março, uma grande movimentação tomou as redes sociais, especialmente entre mulheres, contra o PL 5435/2020. Apelidado de “Bolsa Estupro”, e proposto pelo senador Eduardo Girão (Podemos – CE), em dezembro do ano passado, o projeto possui irregularidades legais, e ainda tem a intenção de proibir o direito ao aborto em casos já previstos por lei (quando a gravidez é fruto de estupro ou apresenta risco para a saúde da gestante e quando o feto é anencéfalo).
Para entender as discussões em torno do assunto, leia a entrevista dada por Carolina Patitucci, advogada e especialista em direitos das mulheres. Ela é ativista pelo Movimento da Mulher Advogada, foi presidente da comissão OAB Mulher em Volta Redonda (RJ) e é vice-presidente da comissão das mulheres do Instituto Brasileiro de Pesquisa Jurídica.
ESQUINAS O que é um projeto de lei? Qual é o processo que ele sofre desde a sua criação até o momento em que entra em vigor?
O poder legislativo tem a prerrogativa de propor um projeto de lei, versando sobre diversas matérias. O senador, deputado, ou até mesmo o vereador no município, pode montar o projeto. Isso não quer dizer que ele já entra em vigor diretamente, pois nesse momento ele é apenas um rascunho. Dentro desse processo, ainda terá um relator que vai cuidar de tudo.
Já no Senado, existe um controle de constitucionalidade, que confere se já existe uma lei parecida ou se a proposta fere, de alguma maneira, algo já previsto na Constituição. Assim, ela passa por votação nas duas casas, na Câmara e no Senado, e tem que ser aprovada pela maioria em ambas. Tratando-se de uma lei federal, como é o caso do PL 5435/2020 (“Bolsa Estupro”), ela ainda segue para sanção do poder executivo, representado pelo presidente.
ESQUINAS Qual a atual situação do aborto no Brasil? Caso o PL 5435/2020 (“Bolsa Estupro”) seja aprovado, quais as implicações para a lei já existente?
Esse projeto é do senador Eduardo Girão, e ele diz que a lei é o “Estatuto da Gestante”. Não é uma lei que vai versar somente sobre o aborto. Mas, eu acredito que a verdadeira intenção do legislador foi de proibir essa questão.
Quando você começa a ler o projeto, você acha uma ideia bonita, legal, que traz direitos e protege a vida da mulher gestante e do feto. Porém, na minha opinião, tudo isso é apenas uma maquiagem, porque sobre essa questão do direito das gestantes já existem diversas outras leis. Na realidade, essa lei não inova nenhum direito ou benefício, só aborda de forma diferente a questão do aborto.
Hoje, no Brasil, o aborto e o autoaborto são crimes, mas existem algumas exceções: o aborto humanitário, em caso de estupro, o aborto necessário, quando a vida da gestante corre risco, e o que foi aprovado em 2012 sobre a questão do feto anencéfalo.
Proibir esse aborto em casos de estupro, na realidade, é proteger demais o feto e ferir esse direito das mulheres, porque é inconstitucional. A Constituição é a nossa lei maior, existe uma hierarquia, e no primeiro artigo fala-se sobre a dignidade da pessoa humana. Se você obriga uma mulher a gerar uma vida proveniente de uma ação violenta, de um crime doloso que é o estupro, você está nada mais do que forçando e obrigando que ela se machuque de forma psicofísica.
A mulher é tratada como se fosse uma máquina. Vem um homem, violenta de forma agressiva e biológica, e ela ainda é obrigada a levar a gravidez ao fim e gerar aquela vida, sendo que não foi um ato que ela permitiu. É muito sério e violento para nós, mulheres.
ESQUINAS A senadora Simone Tebet (MDB/ MS) está escrevendo um texto substitutivo e prometeu retirar o artigo que diz respeito à proibição do aborto em casos de estupro. O maior impacto do projeto seria, então, um auxílio financeiro às mulheres que foram violentadas. Quais as implicações disso?
O senador já afirmou que vai retirar o artigo 11 do projeto de lei, apelidado de “Bolsa Estupro”. Para mim, são muitas as questões graves desse projeto, como a questão do auxílio, pois pode-se criar um estigma, um preconceito, já que sempre existe a culpabilização da vítima. Foi estuprada, estava aonde? Com que roupa? Desacompanhada? Agora, essa bolsa vai agravar ainda mais esse quadro, com a ideia de que a mulher quis ser estuprada para receber o auxílio financeiro.
Então, você acaba obrigando a mulher a levar essa gravidez traumática adiante, dentro de uma sociedade que culpa a vítima e demoniza o aborto. Mas, o mais grave para mim nesse artigo é que ele fala do genitor. Ele trata o estuprador como genitor, e a mãe vai ser obrigada durante todo o tempo de gestação a informar o abusador sobre a gravidez. Então, não adianta só retirar o artigo 11 em que ele fala do auxílio e do aborto e deixar o legislador permitir que esse pai tenha um poder familiar sobre a criança.
O poder familiar é uma nomenclatura trazida pelo Código Civil e abriga todos os direitos e deveres que os pais têm sobre o filho menor. Mas existem outras leis que falam que esse poder pode ser destituído dos pais caso eles cometam crimes dolosos, sujeitos à reclusão, contra familiares. Então, aparece esse “Estatuto da Gestante” que não respeita a hierarquia das leis e afirma que esse pai tem o direito de acompanhar toda a gestação e o dever de pagar a pensão.
E não acaba por aí, existem outras questões absurdas. Ele confunde a nomenclatura “nascituro” com “criança”. Já no primeiro artigo do projeto, ele fala de “criança por nascer”, mas o nosso Código Civil diferencia a criança do nascituro, já que o último tem expectativas de direitos, ele ainda é um feto que está sendo gerado, não tem uma personalidade jurídica. Já a criança, ela tem direitos, tem uma personalidade jurídica, nome, CPF. Então, até os termos estão sendo usados da forma errada. Quando uma mulher comete o autoaborto, a penalidade é muito menor do que se ela assassinasse uma criança. A lei em si protege muito mais a criança do que o nascituro, há uma diferença de penalidade. É assim que conseguimos entender a real intenção do legislador ao usar essas nomenclaturas erradas.
Ainda, o artigo 8° do projeto responsabiliza terceiros que cometam algo contra a criança por nascer, utilizando o termo errado. Isso pode gerar uma questão grave contra os médicos, que podem ser responsabilizados caso performem um aborto necessário ou humanitário. Assim, nenhum profissional irá querer realizar esses procedimentos, que são legais e previstos por lei.
ESQUINAS Existe alguma maneira de a sociedade lutar para que projetos como o PL 5435/2020 (“Bolsa Estupro”) não sejam aprovados?
Caso a lei seja aprovada, ainda existem meios, como protocolar uma ação coletiva no STF. Geralmente, quem está apto a fazer isso são partidos e associações, que podem falar que a lei é inconstitucional e que fere princípios. Então, ainda há a esperança de que ela possa ser barrada no judiciário.
Se você jogar o número do PL mais senado federal no Google, você será encaminhado para uma enquete se concorda ou não com o projeto. A gente pensa que não, mas a pressão popular funciona. O senador propôs e o projeto repercutiu tão negativamente que ele já voltou atrás para fazer as correções e retirar o artigo 11. Essa movimentação faz muita diferença.
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ESQUINAS O quadro de estupros no Brasil abriga, em grande quantidade, meninas menores de idade, com cerca de 14 anos. Como esse projeto afeta essa parcela?
O Código Penal permite que as meninas menores abortem com a autorização dos representantes legais, que geralmente são os pais. Esse estatuto não proibiu a prática do aborto, porque ele não tem esse poder, essa lei não seria o meio necessário para extinguir o código já existente, mas fala que, caso a menina engravide, terá um auxílio maior do Estado. O artigo não é alterado, o aborto não é proibido, mas imagino que seja o primeiro passo para isso, vai abrir as portas para a alteração.
ESQUINAS Por que discutir a questão do aborto é tão complicado no Brasil, diferente de outros países da América Latina?
Acho que por duas questões. Primeiro, o conservadorismo. Aqui, temos a ideia da família, dos bons costumes, e isso acaba beirando a questão religiosa. É importante falar que não adianta ser contra ou a favor do aborto. Ser contra não quer dizer que ele não acontece. E se é algo que já ocorre, é um assunto que deve envolver políticas públicas, porque muitas mulheres perdem as suas vidas porque o Estado não acolhe a parcela que decide fazer esse procedimento.
O segundo ponto é a participação das mulheres nos espaços de poder. Se olharmos hoje para o nosso legislativo e executivo, tanto nas instâncias federais, estaduais ou municipais, podemos ver que os homens ocupam a maioria dos espaços. Então, quem faz as leis, são eles. Por exemplo, quem criou o estatuto da gestante foi um homem. Claro que não existe uma regra ou lei que proíba um homem de criar uma legislação para mulheres, mas quem tem a sensibilidade e sabe as reais necessidades da mulher para criar esses projetos? Nós, porque é nosso local de fala, nós passamos por isso.
Acredito que uma democracia só pode ser efetiva quando todas as pessoas que fazem parte da sociedade ocuparem os espaços. Como vamos criar políticas públicas para esses grupos sub-representados sem que eles estejam presentes nos espaços de discussão? Não há o interesse, e os assuntos são deixados de lado.
Não é uma questão de a senadora ser contra ou a favor do aborto, dos princípios da fé de cada um. É tratar o tema como um assunto de políticas públicas, é um problema de saúde pública, então tem que ter um interesse público e todos os outros interesses privados, religiosos, de costumes e pessoais devem ser deixados de lado.
ESQUINAS O quão longe estamos de legalizar o aborto no Brasil?
Infelizmente, ainda estamos muito longe não só de alcançar a legalização, mas até mesmo de conseguir começar uma discussão sobre. Não é um debate simples, tem que passar pela aprovação de duas casas, pela sanção presidencial, fora os estudos científicos e médicos sobre o assunto.
O Brasil se mostra muito moderno, aberto a novas ideias, mas na verdade é extremamente conservador. Isso se deve muito a quem ocupa os espaços de poder, visto que eles estão ali como um reflexo de toda a sociedade. Sem o voto da maioria da população, eles não teriam sido eleitos. É a vontade da maioria, ainda.
ESQUINAS O que a proposta de um projeto como o “Bolsa Estupro” para a luta das mulheres?
Significa um retrocesso imenso nos direitos das mulheres. Nós temos a Lei Maria da Penha, que é considerada uma das três melhores leis de combate à violência contra a mulher no mundo. Então, imagina, nós temos essa lei maravilhosa, e que vai se aprimorando, e é criado um “Estatuto da Gestante”, que não é sobre as mulheres. O verdadeiro objetivo é proibir os abortos legais e estigmatizar ainda mais a mulher violentada.
Ela é perigosa porque podem aprovar achando que não tem importância, “é apenas um artigo sobre o ‘Bolsa-Estupro'”, “só tem a questão do estuprador como genitor”. Ter isso em 2021 é um grande retrocesso, visto todos os avanços que estão acontecendo em relação aos direitos das mulheres no Brasil.
Como advogada que atua na área, nunca vi essa quantidade de mulheres que estão sofrendo com violência igual nesse período de pandemia na cidade de Volta Redonda. Às vezes, eu saio da delegacia chorando. Você recebe uma ligação, é mais uma mulher sofrendo, mais uma mulher que está quase sendo morta. É lutar todos os dias contra o sistema, contra a violação de direitos, contra os homens abusadores e contra a criação dessas leis absurdas. A carga em cima de nós, mulheres, é muito grande, parece que o tempo todo estão querendo nos matar, nos violar. É como se o nosso corpo fosse público.”