Fernanda Piccolo afirma que o amor entre mulheres foi apagado da história e que a iniciativa Documentadas busca resgatar essas representações
“A arte, desde sempre, foi uma ferramenta de resistência para o movimento LGBTQIA+, principalmente a fotografia”, afirma Pedro Paulo Furlan, 19 anos, líder da Frente LGBTQIA+ da Faculdade Cásper Líbero. “Algumas fotografias já viraram clássicos queer e fazem com que a nossa comunidade possa se ver refletida de uma maneira completamente real’’.
Com esse pensamento, foi criado o Documentadas, primeiro banco de registro sobre amor entre mulheres. Nasceu com o objetivo de deixar essa representatividade para o futuro, mas também para o agora, já que é aberto a todos em seu site e no Instagram. Para ESQUINAS, Fernanda Piccolo, a criadora do projeto, conta as motivações por trás da iniciativa e a importância de não dar apenas voz, mas também identidade visual à resistência da comunidade.
A lente que enxerga o amor: criação do projeto Documentadas
Estudando sobre a história da comunidade LGBTQIA+, uma coisa chamou a atenção de Fernanda: “Reparei que ninguém falava sobre as mulheres. Isso me entristeceu muito’’. Depois disso, em 2020, a fotógrafa decidiu criar o Documentadas. O projeto é totalmente independente, organizado e produzido por Fernanda, e conta com um site e uma página no Instagram, que acumula mais de 3,7 mil seguidores e 70 posts que dão lugar a histórias reais sobre o amor entre mulheres.
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Fernanda acredita que a fotografia como forma de documentação da história é essencial para o entendimento do que é ser humano. É através das representações que se constrói o conceito de humanidade, e ter conhecimento do amor entre pessoas do mesmo sexo é necessário para que se reconheça o lugar dessas expressões de afeto na sociedade. Com o apagamento do amor sáfico, a luta para seu reconhecimento e legitimação se torna muito mais complexa dentro de uma realidade já homofóbica.
A falta de espaços ocupados por mulheres acontece até mesmo dentro do próprio movimento LGBTQIA+, como relata Fernanda: “Já aconteceu de eu conversar com meninas que participaram do Documentadas e elas falarem ‘Nem me considero isso aí [LGBT+], pra mim é só homem gay que faz parte’. Até nossa protagonização dentro do movimento é diminuída porque só vemos homens”.
“Essa ‘inexistência’ do amor lésbico tem tudo a ver com machismo”, ela explica. “Nós, mulheres, nunca tivemos o direito de sermos registradas. Esse apagamento tem relação com o fato de que não podíamos nem falar. Se agora eu pego uma câmera e fotografo outras mulheres, é porque, pela primeira vez, posso fazer isso.”
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Além do clique, Fernanda escreve um texto para cada história de amor. Para ela, o mais marcante são as respostas que recebe quando pergunta para o casal “O que é o amor?’’: “É super clichê, mas nunca alguém respondeu igual. Uma pessoa pode responder que amar é respeitar e outra pode me dar uma receita de bolo, isso já aconteceu’’.
Atingindo a todos: o alcance do afeto
Com o alcance proporcionado pelas redes sociais, o Documentadas traz visibilidade ao amor de todos os cantos do Brasil. “O retorno está sendo muito legal, todo mundo coloca muita fé no projeto. Quem chega até a página de forma orgânica são pessoas muito diversas em corpos, idades, regiões.” No entanto, a busca por um apoio maior, em peso e influência, é complicada, como explica Fernanda: “Está sendo muito difícil ter abertura com influenciadores, mesmo que LGBTs. Imagino que, para quem começa algo do zero, sem conhecer ninguém, deve ser impossível.”
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No entanto, as dificuldades não param Fernanda em seu caminho de levar representações de casais reais para um público crescente. “Ver as histórias me inspira a continuar. Quando vejo tudo acontecendo e encontro as mulheres e escuto as histórias, vejo como nós merecemos isso, ter acesso a essa informação e ver que não estamos sozinhas.”
A representatividade que a fotógrafa traz através do trabalho no projeto é também uma forma de corrigir as falhas que a fizeram sofrer no passado: “Qualquer menina pode entrar na plataforma e encontrar casais que são felizes e que se amam sem qualquer problema. A gente merece saber quem somos, para que daqui 50, 60 anos, ninguém passe pelo que eu passei. Aquela dor de não saber quem eram as pessoas que vieram antes de mim.”
Para Pedro Paulo, “os bancos de fotos fazem exatamente isso: nos mostram que a gente existe e que a gente resiste. É fundamental ter registros que expõem o amor e a luta queer’’.