Geração 68 valoriza o SUS e sabe identificar um governo que flerta com o autoritarismo e ameaça a democracia
“Não importa a idade, o que vale é a ideia, os valores de humanidade, solidariedade e democracia que nortearam e norteiam nossa luta”, diz Decio Ferroni, 71 anos, matemático formado pela USP. Ele faz parte da Geração 68, composta por jovens que se organizaram para fazer resistência à Ditadura Militar. Mais de 50 anos depois, eles voltam às ruas, agora protestando contra o governo de Jair Bolsonaro e a má gestão da pandemia no País. Quando perguntado sobre a motivação para ir às manifestações ocorridas em 29 de maio e 19 de junho, tendo em vista a crise sanitária e sua idade, Decio apenas mostra a camiseta, onde se lê “Sempre na luta”.
Os idosos que hoje saem às ruas viveram, ainda jovens, o período de maior repressão do Brasil. Durante o regime militar (1964-1985), muitos deles colecionaram experiências de medo, opressão e violência com as ações do governo de prender, matar e calar o povo por meio de atos institucionais.
A resistência contra esse regime ganhou força em 1968, quando estudantes foram às ruas lutar por liberdade. Anos depois, em 1983, surgiu o movimento “Diretas Já”, que mobilizou todo o País a favor do voto direto para presidente. Dois anos depois, a ditadura chegou ao fim.
Em 1988, durante o governo Sarney, os brasileiros viram um sistema de saúde pública, o SUS, sendo criado no Brasil. Eles também acompanharam a erradicação de doenças, devido a companhas de vacinação gratuita, como a da Poliomelite, que não apresenta casos no País há mais de 20 anos, segundo laboratório da Fiocruz.
Por esses motivos, os participantes ativos nas Diretas Já, agora idosos, valorizam o sistema de saúde brasileiro e conseguem facilmente identificar um governo que flerta com o autoritarismo e ameaça a democracia. Decio Ferroni, Antônio Brito e Cláudia Arruda Campos são exemplos de militantes que fizeram história no passado e continuam em ação defendendo suas causas.
Geração 68 na luta
Decio tem uma vida marcada por lutas a favor da democracia desde muito jovem. Quando não conseguiu ingressar na Universidade São Paulo, em 1968, por falta de vagas, mesmo tendo a nota necessária, se engajou em protestos para reivindicar seu lugar. A partir daí, presenciou a famosa Batalha da Maria Antônia, confronto entre estudantes da USP e do Mackenzie, e participou ativamente das Diretas Já.
Dentro da faculdade, e acreditando em uma revolução mundial, entrou no partido Quarta Internacional Trotskista. Ainda hoje, Decio carrega algumas características desse pensamento: “Não vou dizer que sou trotskista. Dourando um pouco a pílula, sou ‘trotskizante’, porque Trotsky era um grande elaborador da política internacionalista que me cativa até hoje”.
Em 2018, ele não acreditava que Bolsonaro conseguiria chegar ao poder, mas alguns acontecimentos, como a facada no ainda candidato durante um comício, fizeram sua ficha cair.
“O planeta inteiro está destruindo seus ditadores, nós temos que destruir Bolsonaro, temos que fazer parte desse processo universal”, afirma Decio. Para ele, a esquerda não pode mais se confrontar se quiser ter sucesso na retirada do presidente e garantir o voto dos “bolsonaristas arrependidos”.
Apesar do cenário de pandemia, ele continua defendendo as manifestações: “Nós não podemos sair das ruas agora, Bolsonaro está apavorado.”
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Ativismo nas ruas
Antônio Brito, 60 anos, funcionário público aposentado, também iniciou seu ativismo com o ingresso na universidade. Nesse período, conheceu pessoas que lhe mostraram a “barbárie do sistema”, o que o incentivou a participar das Diretas Já.
Ainda jovem, conheceu o vegetarianismo e se envolveu primeiro com a causa animal; depois, com a ambiental. O engajamento o levou a um grupo de resgate de animais em Belo Horizonte, que abriu oportunidades e intensificou seu compromisso com o movimento. Hoje, vegano há anos, Antonio leva sua luta por onde vai.
Desesperançoso com o Brasil, ele acredita que o País vai demorar a se estabilizar, mesmo com Bolsonaro fora. Além disso, não imaginava ter que “lutar contra o fascismo em 2021”, depois de tudo que já aconteceu na história. “Com todo o movimento das Diretas Já, pensei que a sociedade brasileira tivesse evoluído para isso ficar no passado”.
Presente nas duas manifestações, de maio e junho, Antonio foi às ruas pedir o impeachment de Bolsonaro e defender causas ambientais e animais, tão escanteadas pelo governo.
Vida militante da geração 68
Septuagésima e professora universitária aposentada, Claudia Arruda Campos lutou contra a Ditadura Militar e em busca de uma democracia renovada no País. Ela saiu de Ribeirão Preto (SP), onde já havia participado de duas grandes manifestações — como a que era contra a mudança da Constituição para que João Goulart não se tornasse presidente –, para cursar Letras na USP, em São Paulo.
Mais uma vez, a vida acadêmica foi responsável por impulsionar a militância e torná-la parte da vida da jovem. “Kaue”, seu apelido, não pensava que teria que lutar novamente “contra um governo que não ajuda a população”. Mesmo assim, afirma que desde a infância já havia percebido que a democracia no Brasil era algo complicado, visto que esse período foi marcado pelo suicídio de Getúlio Vargas.
Apesar de nunca ter imaginado que estaria nas ruas em 2021, a militante já enxergava Bolsonaro sendo eleito em 2018. O movimento “Ele Não” até aumentou suas esperanças, mas, segundo Claudia, o rancor que a classe dominante fomentou contra o Partido dos Trabalhadores (PT) foi essencial para a vitória do atual presidente.
“A classe dominante brasileira é muito truculenta, extremamente selvagem. A distribuição de renda está estupidamente desigual, o interesse nas questões sociais, é abatido. Você começa a ver alguma conquista, ela é derrubada”, opina.
O principal grito de Claudia nas manifestações recentes é “Fora Bolsonaro Já”. A militante também quer vacina urgente, esclarecimentos sobre a lentidão na compra dos imunizantes, além de auxílio ao povo para passar pela crise. “Eu que dizia ‘Abaixo a ditadura’, agora tenho que dizer ‘Ditadura nunca mais’”.