Em entrevista a ESQUINAS, Cassio Luiz de França fala sobre possibilidade de nova crise energética, ações do governo e privatização da Eletrobras
Vinte anos após o apagão energético que desgastou o segundo mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o Brasil se encontra em um cenário muito parecido com o daquela época: diminuição das chuvas e, consequentemente, do nível dos reservatórios; dependência da matriz hidrelétrica e procrastinação de medidas de contenção da crise pelo governo federal. Mais do que isso: muitos dos erros cometidos estão sendo repetidos de forma quase idêntica pela administração de Jair Bolsonaro (sem partido). A avaliação é de Cassio Luiz de França, especialista em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e autor de tese de doutorado sobre a crise de 2001.
Sócio-diretor da Trajetórias Planejamento e Desenvolvimento Institucional, Cassio diverge da análise de que o sistema energético está mais maduro e de que o racionamento está afastado. “Tendo estudado o que estudei, eu diria que só um milagre fará com que não haja uma crise daquele porte. Porque os níveis dos reservatórios hoje estão mais baixos do que no passado. Mesmo assim, o governo tem declarado que não haverá racionamento. Eu não sei como.” Na entrevista, ele comenta ainda a proposta de retomada do horário de verão e a privatização da Eletrobras.
ESQUINAS Em julho passado, a crise energética de 2001, o “apagão”, completou 20 anos. Que balanço é possível fazer daquela crise e do setor energético desde então?
Como pano de fundo, o sistema elétrico segue muito semelhante. A nossa matriz energética é predominantemente baseada em água. Claro, a dependência dela diminuiu nesses últimos 20 anos. Contando Itaipu, a gente podia dizer que até 85% era baseada em água; hoje, está em 65%, 70%. Ou seja, diminuiu a dependência, mas, apesar de ser uma vantagem comparativa para nós, o coração do sistema ainda é o mesmo.
Em 2001, tínhamos uma mudança brutal do sistema, que já estava no seu limite de financiamento, com uma aposta muito grande na privatização de empresas. Entre 1996 e 1998, foram privatizadas 20 empresas de distribuição e quatro de geração. A crença era que a privatização levaria a um aumento de geração de energia.
ESQUINAS Por que isso não ocorreu?
Em 2001, quando houve a grande crise, as instituições que regulamentam o setor eram muito novas. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) é de 1998, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) é de 1997, o mercado atacadista veio em 1998, 1999. Imagina implementar um modelo com participação privada sem uma regulação por trás. Agora, em 2021, essas instituições têm 20 anos. A Aneel tem mais de 20 anos. Em tese, elas já seriam mais robustas para regular o sistema. Não são. Tanto que nós estamos de crise em crise.
ESQUINAS Apesar de ter permitido que a situação evoluísse para um racionamento de energia, o governo FHC é elogiado pela transparência e pela comunicação com a população. Você concorda?
O governo FHC é mesmo elogiado pela transparência e pela comunicação com a população, mas apenas depois de ter assumido a crise. É muito importante deixar isso claro. O sistema tem alertas. O ONS é um órgão muito importante do governo. A partir do momento em que ele começa a soltar alertas, é preciso fazer alguma coisa. O que o governo FHC fez? Desde os primeiros alertas no final de 1999, até assumir a crise em março de 2001, não tinha feito nada. Qual é a transparência nesse caso?
ESQUINAS Mas a crise foi, em alguma medida, gerida.
É verdade que o Pedro Parente (ministro do governo FHC e coordenador do “Ministério do Apagão”, responsável pela gestão da crise energética) foi um dos melhores gestores que aquele governo teve. Parente assumiu a condução da crise com primor, mas a gente não pode dizer que aquele governo agiu de forma muito republicana. Um ano antes, FHC negou a possibilidade de crise, reconhecendo que os níveis dos reservatórios estavam baixos, mas descartando racionamento. Então, ele já estava com a corda no pescoço, até que chegou 2001 e não teve mais como esconder, porque o desastre seria muito maior. Inclusive, em março de 2001, eles trocam o ministro de Minas e Energia, tirando o (Rodolpho) Tourinho e colocando o José Jorge, até para jogar toda a culpa da crise no Tourinho.
Importante registrar essa posição do FHC e o que ficou para a História porque a crise energética maculou o governo dele e foi importante para a derrota do PSDB nas eleições do ano seguinte. Agora, olhando para trás e comparando com esses malucos que estão em Brasília hoje, os caras se tornaram se republicanos (risos).
ESQUINAS As medidas propostas pelo governo Bolsonaro vão em qual direção?
São as mesmas apostas do governo FHC: importação de energia, campanhas de economia do consumo. Em termos de promover o racionamento, FHC esticou a corda até o final. A mesma aposta de agora: “Vamos torcer pela chuva”. Mas chegou uma hora em que não tinha mais chuva e, portanto, não tinha mais como evitar uma atitude drástica.
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ESQUINAS O ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, negou em cadeia nacional a possibilidade de racionamento. Como enxerga essa possibilidade? O governo está minimizando a crise?
Eu converso com alguns colegas do campo da administração pública e eles dizem que há pouco risco de uma crise daquele porte se repetir. Mas, tendo estudado o que estudei, eu diria que só um milagre fará com que não ocorra uma crise daquele porte. Porque os níveis dos reservatórios hoje estão mais baixos do que no passado. A situação hoje é muito pior do que em 2001. Mesmo assim, o governo tem declarado que não haverá racionamento. Eu não sei como. As chuvas podem não vir. Há uma expectativa de crescimento econômico para o ano que vem, mas não tem como sustentar isso com a quantidade de água nos nossos reservatórios. Acho que, mais cedo ou mais tarde, essa crise terá de ter medidas mais drásticas. Vale lembrar que, de 2001 a 2002, foram 11 meses de medidas. Não é algo trivial, não passa rápido. Não será uma campanha que fará este país economizar energia.
ESQUINAS Mas, diferentemente de 2001, o sistema hoje possui termelétricas.
Mas elas não resolvem o problema de energia elétrica no país. Elas são complementares. Estão usando tudo, estamos em bandeira vermelha-2 (na conta de energia, desde o final de junho). A crise está anunciada. Eles vão esticar a corda até quando puderem, usando termelétricas ao limite. Mas eu acho difícil, no ano que vem, se não chover muito e se houver crescimento econômico, não ter um racionamento.
ESQUINAS Pode haver impactos na economia, principalmente no pós-pandemia?
O aumento da atividade econômica pós-pandemia pode ser, usando uma palavra da área, represado pela crise energética. Não acho difícil esse cenário acontecer. Este país não cresce 5%, 6% ao ano, se precisar, com a crise que pode ocorrer. Para minimizar os efeitos da pandemia na população mais carente, é necessário crescimento econômico. E, para ativar a economia, energia é algo fundamental e talvez a gente não tenha o quanto precise.
ESQUINAS O fim do horário de verão, decretado em 2019, pode ter contribuído para o agravamento dessa crise?
Posso falar como especialista em gestão pública, não como especialista em energia. Acho que o fim do horário de verão teve uma contribuição muito marginal nesse processo. A questão de energia elétrica depende de atitudes robustas para dar sustentabilidade e segurança para o nosso modelo energético. Surgem agora campanhas pela volta do horário de verão, para que as pessoas fiquem mais tempo fora de casa, consumam mais fora de casa. Acho que a volta dele é até bem-vinda, mas não é isso que vai resolver o problema hídrico brasileiro.
ESQUINAS As chuvas vão resolver?
Essa é a maior esparrela que pode existir. “Ah, choveu tão pouco no último verão que nós estamos numa crise…” Isso é conversa para boi dormir. Um sistema como esse, robusto como ele é, não se agrava com um crise pluvial de um ano. O que está sendo feito neste país há um bom tempo, como foi feito em 2001, é o uso de reservas dos reservatórios.
ESQUINAS Em meio a esse cenário, o governo Bolsonaro conseguiu aprovar no Congresso Nacional um controverso projeto de privatização da Eletrobras, criticado até mesmo por liberais como Elena Landau (ex-coordenadora do programa de privatizações do governo FHC) e com custo estimado em R$ 84 bilhões para o consumidor. Como isso deve impactar a crise no setor elétrico?
É um erro crasso, num momento como esse, vender a Eletrobras. Esses caras estão desprovendo o país de qualquer possibilidade de gestão da energia elétrica com essa venda. Não se vende a Eletrobras. Essa empresa precisa existir. É ela que vai salvar esse país quando o setor privado não fizer o investimento. Ela deve ser nossa parceira na geração de energia. Um modelo baseado no setor privado num país como este, de dimensões como este, não vai funcionar. Essa privatização é apostar em São Pedro. E um governo que aposta em São Pedro em suas políticas energéticas é absolutamente irresponsável.