"Era pouco, mas era o que eles tinham. Agora, não sobrou nada": engenheira ambiental lamenta sequelas das enchentes no Acre - Revista Esquinas

“Era pouco, mas era o que eles tinham. Agora, não sobrou nada”: engenheira ambiental lamenta sequelas das enchentes no Acre

Por Marina Ponchio e Thiago Baba : março 31, 2021

Acreana de Sena Madureira relata como foram os dias de desespero na linha de frente das enchentes

Imagine: você vai dormir, e a água está no seu pé. No dia seguinte, no seu umbigo. No outro, sua casa está inundada e todos os seus pertences são levados pela água. Foi o que experienciou a população acreana, atingida por enchentes em fevereiro. Milhares de pessoas ficaram desabrigadas e indígenas e ribeirinhos foram gravemente afetados. “Quando a água veio, ela veio muito rápido. Íamos dormir e, quando acordávamos, a água tinha subido um metro, um metro e meio”, relata a engenheira ambiental e membro da SOS Amazônia Thayna Souza, 31 anos.

Nascida em Sena Madureira, cidade com população estimada de 46.511 habitantes em 2020, Thayna viu sua terra natal ser um dos municípios mais afetados pelo alagamento no estado em decorrência da cheia história, em fevereiro.

A frágil infraestrutura dos municípios do estado foi um ponto crucial para que a tragédia tomasse essa proporção. Os bueiros estavam entupidos, bloqueando o escoamento de água, e quando as ruas começaram a secar,  era possível ver o lixo nas calçadas e nas avenidas. “O estado tem sua parcela de culpa, mas nós temos a nossa também. Existia muito lixo nas ruas, isso pode ser consequência da má coleta de lixo ou da deficiência na educação básica, ninguém fez 100% da sua própria parte”.

A criticidade da situação não permitia que as pessoas buscassem carros, caminhões, ou mesmo pessoas para deslocar seus móveis e sua família. As principais vias de acesso da cidade foram obstruídas. Não havia braços suficientes para carregar os pertences que sobraram. Thayna, que foi visitar a família e se viu em meio ao caos, resolveu ajudar. Com um grupo de amigas e um Gol, elas constataram que “as necessidades das pessoas não eram nem as básicas, era outro nível. Tinha todos os tipos de pessoas, crianças recém-nascidas, mulheres grávidas, idosos, todo mundo desesperado”.

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“A sensação que dá é que a gente tá gritando muito e não tá fazendo barulho nenhum”. Segundo ela, demorou para que a situação repercutisse no resto do País e para que chegasse ajuda. “O olhar demorou, a preocupação com o que estava acontecendo aqui demorou, a ajuda demorou para chegar. A campanha SOS Acre, por exemplo, recebeu ajuda só no final do episódio”, afirma.

Em 22 de fevereiro, uma semana após o início das enchentes, o governo federal reconheceu estado de calamidade pública declarado pelo governador em 10 cidades acreanas.

Apesar de haver várias organizações envolvidas em arrecadação de cestas básicas, o foco da campanha era ajudar mulheres com crianças de colo. Thayna descreve o cenário desesperador: bebês enrolados em fraldas de pano porque a família não tinha outra alternativa, mães com até sete filhos desoladas por terem perdido tudo o que lutaram a vida inteira para conseguir. “As famílias não sabiam o que fazer, o dinheiro reservado para o mês não dava para pagar o aluguel em outro lugar.  Era pouco, mas era o que eles tinham. Agora, não sobrou nada”, diz.

Thayna teve a ideia de usar parte do recurso cedido pela ONG SOS Amazônia para oferecer cestas básicas e kits mamãe e bebê. Através de doações pelas redes sociais, foi possível estender o braço para várias pessoas, com exceção das populações ribeirinhas, isoladas pela água. O movimento cresceu e mais doações começaram a chegar. Ainda assim, não foi possível atender a todos.

“Começar do zero”

A enchente não tomou conta apenas de casas. Os supermercados alagaram e ficaram fechados. O preço dos alimentos subiu e a população não tinha dinheiro para comer. A prefeitura manteve cozinhas solidárias para entregar comida nos abrigos e outras ações foram feitas por parte de ONGs.

A lembrança da situação faz o choro emergir dentro de Thayna, que revive o momento. “Muita gente perdeu tudo. Na época, as pessoas não tinham ciência de como estava a casa. Nos bairros que sumiram debaixo da água, a maioria das casas era de madeira, a força da água estava muito forte”.

Thayna conta que, no início de março, agentes estavam limpando a cidade para as pessoas voltarem a suas casas. A enchente, segundo ela, afetou bairros muito humildes em Sena Madureira, onde os moradores vivem abaixo da linha da pobreza. “Eu, sinceramente, não vejo como esse povo vai recomeçar. Esses bairros são muito carentes. Estão precisando de tudo, cesta básica, produto de limpeza e assistência de saúde, porque começam a aparecer outras doenças, como leptospirose, depois que a água baixa”, diz.

Em meio à angústia de tentar recuperar o que sobrou, a pandemia era o último tópico em mente. Nos abrigos criados pela prefeitura, não era possível manter o distanciamento social. Além de Sena ser uma cidade pequena, a necessidade humana de ajudar o próximo falava mais alto e tudo era compartilhado entre as famílias. “A cidade estava um caos, não tinha recursos humanos suficientes para ajudar os desabrigados.  Por mais que fossem distribuídas máscaras, álcool e kit de higiene, não havia como as pessoas darem atenção a isso”.

Thayna enxerga os atos solidários com esperança: “Muita gente ajudou, são ações como essas que nos fazem seguir em frente”. A prefeitura está dando assistência para o retorno às casas, mas “o recomeço é muito doloroso, é começar do zero”.

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