Flávia Antunes e dois de seus filhos foram diagnosticados com autismo e enfrentam, além da dificuldade de convivência, a falta da vida escolar
Devemos confessar que Antônio Lorenzzo nunca foi um grande fã de escolas. autismo
Enquanto Flávia Antunes atendia os pais na reunião do colégio, o menino passou mais de cinco horas sentado no mesmo brinquedo. Na mesma posição. Sem interagir com nenhuma criança.
Os médicos insistiam que não havia com o que se preocupar.
— É normal, mãe.
Mas instinto materno não se engana, não é mesmo? Flávia pediu demissão e dedicou-se à Lorenzzo integralmente. Quando finalmente conseguiu o diagnóstico do filho, depois de dois anos e meio, a cegonha anunciou a vinda de mais um azulzinho. Mas no chá revelação da vida, azul não é cor de menino.
Luigi é o mais novo. Veio depois de Lorenzzo.
— Eu tenho cinco anos, mas o meu irmão tem oito anos. Ele é três anos mais velho do que eu…
Tudo que o irmão tinha de calmo, ele tinha de agitado. No primeiro mês de vida, a mãe já desconfiou.
Flávia ainda guarda os bolos de bilhetes que chegavam da creche. Mordidas, tapas, agressividade. Sempre irritado, não suportava a companhia das outras crianças. Característica forte do TOD, Transtorno Opositivo-Desafiador. A neuropediatra insistiu em dizer que não havia nada de errado. Mas havia. Em três anos e meio, com muita insistência, Flávia pôde confirmar mais um diagnóstico.
Não. Não foram um, nem dois, mas sim três diagnósticos de TEA na família, o tão falado, mas pouco conhecido: Transtorno do Espectro Autista.
Apesar da escassez de dados brasileiros, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que hoje, no mundo, uma em cada 160 crianças tenha autismo. Devido a sua pluralidade, o transtorno passou a ser espectro. Afetando principalmente o desenvolvimento das capacidades de comunicação e interação, o autismo ainda surpreende até os mais entendidos do assunto.
Três vezes TEA
Ainda está se perguntando onde o terceiro diagnóstico se encaixa nessa história? Mãe de quatro filhos, sendo Gabriel e Melissa já maiores de idade, Flávia Antunes entregou-se totalmente ao suporte dos filhos mais novos.
Assistindo o depoimento de uma mãe sobre o processo de diagnóstico do filho adolescente, Flávia começou a se identificar com muitas situações. A partir deste dia, há quatro anos, uma pulga se mudou para atrás de sua orelha. No mesmo ano, foi sancionada a Lei nº 13.438/2017, que obriga o SUS a aplicar as avaliações para detectar um desenvolvimento atípico em bebês de até 18 meses, evitando o diagnóstico tardio.
Flávia, no entanto, passou 456 meses de sua vida sem nem sequer imaginar que também fazia parte deste universo.
— Para mim esse processo foi muito doloroso. Eu não aceitava ter passado a vida inteira sem ninguém ter percebido.
No auge de seus 40 anos, a mãe descobriu-se como autista. Afirma que sentiu-se burra por muito tempo. O diploma na faculdade de Matemática foi difícil de conquistar. Procurou culpados, se revoltou e foi cruel consigo mesma.
Quando finalmente começou a se libertar e a entender diversas questões de seu passado, a pandemia de covid-19 dominou o mundo. Ali começava o reality show da vida real para testar os limites de três pessoas com autismo que, apesar de diagnosticados com o mesmo transtorno, são muito diferentes entre si. Roda a vinheta, produção.
Luigi é muito barulhento, desenvolveu muito bem a fala e a comunicação. Lorenzzo não suporta barulho, tem sensibilidade auditiva e apesar de falar bem, ainda tem dificuldades de interação.
— Aqui em casa às vezes vira um caos, tem que colocar cada um para um canto.
Flávia também não gosta de barulho. Sempre muito metódica, se frustra com facilidade. Depois do diagnóstico, entendeu que isso fazia parte do espectro e passou a lidar melhor com essas questões.
— Eles (filhos) devem ter dado graças a Deus com o meu diagnóstico, porque eu parei de exigir tanto deles na parte pedagógica.
Autismo e vida escolar na pandemia
Na área há mais de 25 anos, a psicopedagoga Fabiana Leme de Oliveira trabalha com educação inclusiva, e pôde perceber como escolas e famílias andam enfrentando momentos bem desafiadores. A orientadora destaca que as dificuldades de acesso, a falta de autonomia digital e a indisponibilidade familiar para fazer a mediação dos conteúdos para essas crianças acabam por evidenciar ainda mais a má qualidade do ensino especial no Brasil. “Só encaminhar a atividade para um aluno que não está alfabetizado e que tem uma série de dificuldades não surte a aprendizagem”.
Os meninos sempre foram matriculados no ensino regular da rede pública. Flávia não teve problemas em garantir os direitos dos meninos antes da pandemia.
— Como eu já chego chegando, com a pastinha embaixo do braço, conhecendo as leis, os direitos, deveres e obrigações de todo mundo, eles não têm muito o que falar.
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Porém, como em toda história d.C. (depois da covid) que, infelizmente, já se escuta há mais de um ano, as crianças entraram na desafiadora rotina do ensino à distância. E coloca distância nisso.
— A gente já tinha conseguido uma estabilidade muito legal. O pouco que ele tinha evoluído, perdeu tudo.
Mariana Grillo, fonoaudióloga especializada pela FMUSP em Psiquiatria Infantil, garante que a negligência das políticas do País em relação à inclusão social de pessoas com autismo reflete diretamente nas dificuldades que as crianças vêm sofrendo com o ensino inclusivo durante a pandemia. “As escolas trabalham muito a socialização, mas com o ensino remoto essa parte fica a desejar”.
Com o segundo e terceiro ano do Ensino Fundamental praticamente perdidos, Flávia ainda tentou ajudar com as aulas online, mas o rendimento não estava sendo bom. O foco de Lorenzzo é muito comprometido pelo TDAH, o que acaba por tornar uma atividade à distância extremamente exaustiva. Como as aulas eram gravadas e não havia nenhum tipo de interação ao vivo, o menino não conseguia tirar nenhuma de suas dúvidas e caia no tédio.
— O Lo é muito questionador, mas não tem ninguém para responder ali na hora…
Flávia decidiu então solicitar um material com conteúdo adaptado para o filho. Fez uma reunião com a professora, mas percebeu que ela não estava compreendendo que Lorenzzo precisava de um suporte maior. Acabou saindo frustrada, uma vez que a docente ousou desconfiar do diagnóstico do menino.
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“Os familiares começaram a exigir a atividade adaptada, e quem tem que adaptar é o professor da sala. Essa atividade precisa ser encaminhada por esse professor porque ele é responsável por esse aluno”, pontua Fabiana sobre a dificuldade das escolas no auxílio às famílias.
Grupo de Apoio ao Indivíduo com Autismo
A falta de atenção do filho e o descumprimento da lei por parte do colégio, dado a obrigatoriedade das instituições em fornecer materiais adaptados para alunos inclusivos, fizeram a mãe optar por deixar de lado a questão pedagógica e aproveitar a energia dos meninos para focar apenas nas terapias de suporte.
Mesmo assim, Flávia descreve a fase das terapias à distância como a mais estressante.
— Ficava aquela falação o dia inteiro aqui em casa. Eu fiquei muito confusa por causa da minha sensibilidade auditiva.
Percebendo a frenagem do desenvolvimento das crianças com a pausa nas idas à escola, Mariana decidiu retornar logo ao atendimento presencial. Seguindo todos os protocolos, voltou a receber seus pacientes na clínica e no Grupo de Apoio ao Indivíduo com Autismo (GAIA). “Eu fiquei muito preocupada porque eles não podem passar tanto tempo sem atendimento”.
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Os ouvidos de Flávia agradeceram o retorno presencial do suporte terapêutico. Luigi e Lorenzzo também. Passam quatro horas por dia na clínica Children’s, em Moema, São Paulo, onde fazem terapia ocupacional, fonoaudiologia, musicoterapia e psicoterapia. Parte dos conteúdos pedagógicos também são trabalhados por lá, mas não substituem a interação social e o desenvolvimento que os meninos conquistariam na escola, presencialmente.
“As mães têm relatado um aumento de maneirismos, mudanças no comportamento e até certa infantilização”, conta Fabiana sobre os impactos do isolamento não só pedagógico, mas social como um todo, nessas crianças.
Ainda assim, Flávia reconhece que vem se preparando psicologicamente para a volta. Sabe que eles estão estacionados no desenvolvimento e que há muito tempo não passam por nenhum tipo de troca ou interação diferente. Por isso, teme que todos os dias seja chamada na escola para acalmar possíveis surtos e crises.
Oliveira e Grillo são unânimes em dizer que a organização é um processo fundamental para inserir uma rotina em crianças com autismo. “É normal que as mães fiquem desesperadas em dar conta do pedagógico, mas o primeiro passo é estabelecer uma rotina de estudos”, comenta a psicopedagoga, na esperança de aconselhar mães que já não sabem mais para onde correr.
— Seja como for, eu sei que eles vão ser muito mais felizes com a volta às aulas presenciais. Vai alavancar o desenvolvimento.
Quanto a isso, não há dúvidas. Mas enquanto esperamos ansiosos pela retomada qualificada do Ensino Inclusivo, até Antônio Lorenzzo, que nunca foi um grande fã de escolas, passou a perguntar:
— Mas eu nunca mais vou para a aula?