Yan Boechat, André Liohn e Erivam de Oliveira relatam experiências na linha de frente na cobertura da covid-19
“Eu me lembro do cheiro muito forte, corpos jogados, as pessoas enterrando seus mortos daquela maneira. Havia corpos ensacados de tanta gente”
Essa foi uma das vivências do fotojornalista Yan Boechat enquanto cobria a covid-19 em Manaus. No calor extremo, nem os caminhões frigoríficos que levavam os cadáveres para o cemitério do Tarumã conseguiam conter o cheiro da decomposição. O odor se intensificava quando as famílias abriam os caixões para garantir que estavam enterrando seus entes e viam os corpos já vazando seus fluídos. Na época, com o sistema funerário da capital beirando o colapso, os funcionários nem chegavam a checar os atestados de óbito por causa do fedor extremo que exalava das valas.
Motivações dos fotojornalistas
“Se a população não vê o que está acontecendo, como eles vão se relacionar com o problema?”
Para André Liohn, fotojornalista de 46 anos, a necessidade de cobrir a covid-19 começou quando ele percebeu que não havia registro algum mostrando a real face do problema com imagens. Tendo iniciado seu trabalho na Itália, um dos países mais impactados pela pandemia, ele diz que, “como fotógrafo que já estava lá dentro, precisava fazer alguma coisa”. Foi então que o fotojornalista deu início à cobertura.
Uma das motivações de Yan para seguir com o trabalho era dar sentido aos números. Como presenciar mais de 30 enterros no cemitério e, mais tarde, ver a notícia de que foram notificadas apenas quatro mortes na capital paulista? Foi assim que decidiu investir todas as suas forças na cobertura, arriscando-se diariamente na linha de frente. “Eu acreditava que seria a grande história de 2020”.
Exposição
A exposição é um fator presente na vida dos fotojornalistas. Enquanto cobria a Guerra no Azerbaijão, no início de 2020, Boechat se contaminou com o coronavírus em um momento que ficou sem máscara. Com 25% do pulmão comprometido, foi difícil achar uma vaga nos hospitais, lotados de soldados feridos. “Quando eu fui fazer a minha tomografia, o aparelho estava sujo de sangue de um soldado que tinha sido atendido antes de mim”, lembra. Quando retornou, o repórter optou por abrir mão de morar com o filho pois tinha ciência de que, por conta do trabalho, poderia se contaminar outra vez.
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A convivência com a família também foi alterada para Liohn. Seus filhos moram com a mãe na mesma rua que a de sua casa, na Itália. Assim, apesar da proximidade, o contato já estava reduzido. Com o lockdown, as idas ao supermercado eram permitidas apenas uma vez na semana e, como ele já saía para trabalhar, acabou se oferecendo para fazer as compras na vizinhança. Na primeira entrega, comprou os “salaminhos” que o filho tanto adora, e o pequeno pediu um abraço ao pai. Na época, sem muita informação sobre o perigo, respondeu: “Vamos deixar para outra hora”.
Vivências chocantes para fotojornalistas
Além da exposição, ser fotojornalista implica em ver cenas fortes. Yan conta que, durante um plantão em um hospital de Manaus, uma família chegava pela entrada de emergência em um carro de aplicativo. Duas irmãs tentavam ajudar o pai, que já estava ofegante e aos gritos: “Me ajude, me ajude”. Ninguém apareceu para prestar socorro. Ainda que treinado em primeiros socorros, o fotojornalista ficou imobilizado pelo medo da contaminação. Quando viu que o homem havia se urinado, pensou: “Não tem mais o que fazer, morreu”. Ele complementa: “Eu fui para porta de hospital e vi gente morrer na minha frente porque o Estado não provê informação nem assistência”.
André passou por uma situação similar durante um dia de cobertura no cemitério. Ele conta que estava fotografando o enterro de uma senhora e seu marido se encontrava chorando sobre o caixão lacrado. “Por achar que eu tinha alguma autoridade, ele ficava me perguntando se eu poderia abrir o caixão para poder ver a mulher uma última vez”, relata.
“Para que serve a exposição? Para que serve o tempo que eu fiquei longe dos meu filhos?”.
Essa é uma das indignações de Liohn ao falar sobre a atual conjuntura do fotojornalismo no País. Para ele, vivenciar momentos tão delicados, como a morte de uma criança, justificam-se quando ele é capaz de produzir e publicar uma matéria que honre a vítima e dê sentido ao acontecimento. Porém, as frustrações que ele encontra dentro do espaço midiático, com a tensa relação entre os editores dos veículos e os repórteres fotográficos, fazem com que experienciar cenas tão fortes seja em vão.
Para Erivam de Oliveira, membro da ARFOC (Associação dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos no Estado de São Paulo) o governo dificulta o trabalho dos fotojornalistas. Segundo ele, quando se deu início à cobertura nos cemitérios, o Governo do Estado de São Paulo tentou barrar a entrada de repórteres no local. “Existe até uma placa ‘proibido fotografar’, em inglês, no cemitério da Consolação. Entrávamos, fotografávamos e, quando éramos indagados, respondíamos: ‘não sei ler inglês’”.
Contando as dificuldades do acesso a informações e autorizações para a cobertura, Yan concorda: “O jornalista é o inimigo número um dos hospitais, pior do que bactéria resistente”. Erivam acrescenta que “quem eles querem pegar é sempre o fotógrafo, quem tem como provar”.
Mortes de fotojornalistas na pandemia
De acordo com o dossiê “Jornalistas vitimados por covid-19”, o Brasil é o país que mais registrou a morte de jornalistas pela doença no mundo. Uma das vítimas foi o fotojornalista Lilo Clareto, que trabalhou com Erivan em projetos fotográficos anteriormente, e faleceu no dia 21 de abril por complicações da covid-19. “O Lilo era um grande fotógrafo, foi uma grande perda”, lamenta o ex-colega.
“Eu queria cobrir tudo, não conseguia ficar em casa em nenhum dia, pegava a câmera e ia para os hospitais”
Yan Boechat se submete aos riscos desde o início da pandemia pois, para ele, o que fala mais alto é a necessidade de realizar seu trabalho com excelência para retratar o que acontece fora da janela do seu apartamento.