A história de ascensão e declínio do Edifício Copan, cartão-postal do centro da cidade de São Paulo, contada pelos moradores
Se Brasília foi construída sobre o ideal de ser uma cidade de possibilidades para toda uma nação, São Paulo não ficou muito atrás. Fruto de políticas de incentivo à imigração e observando a industrialização chegar em peso, a cidade vivia um verdadeiro boom populacional desde a virada do século XX. Já nos anos 50, a capital do estado mais rico do país era percebida e tratada como um importante centro econômico e cultural.
Grandes construções faziam parte da urbanização paulistana havia alguns anos — Edifício Itália, Edifício Martinelli, Edifício Banespa (atual Farol Santander) e a própria Avenida Paulista eram expressões gritantes de que uma cidade moderna fazia parte da realidade do país. É nesse contexto de ebulição que se encontram o projeto, a ideia, o rascunho e, consequentemente, a construção do Copan — de Companhia Pan-América Hotéis e Turismo.
Era, então, a maior estrutura de concreto do país, com 115 metros de altura e 32 andares. Suntuoso, imponente, diferente e, especialmente, moderno, o edifício localizado no centro paulistano não precisou de muito para se destacar. Copan e cidade se relacionam de maneira fluida como os ângulos formados pelas sombras e curvas do prédio. Como o próprio idealizador e arquiteto do projeto, Oscar Niemeyer, disse:
“Não é o ângulo reto que me atrai, nem a linha reta, dura, inflexível. O que me atrai é uma curva livre e sensual.”
Bem-vindos ao Copan
Construído para comemorar o 400º aniversário da cidade, é apenas uma coincidência do destino que ele seja encontrado no número duzentos da avenida que carrega o nome do riacho que corta São Paulo e que foi tão importante para a história da cidade e do Brasil: Ipiranga. É tudo muito marcante e, especialmente, hiperbólico — desde o projeto até os versos que inspirou. Planejado pelo maior nome da Arquitetura brasileira, na maior cidade do país, nascia a maior armação de concreto da América Latina, com seus 1.160 apartamentos.
Talvez a hipérbole seja, de fato, a melhor figura de linguagem para escrever sobre o Edifício Copan, suas histórias e seus moradores. É preciso entender desde o início: não se trata de um prédio qualquer, logo, não são personagens quaisquer. Ali, tudo é muito — então ajeite-se na cadeira e mergulhe de cabeça nas ondas dos ângulos curvos do querido e amedrontador Copan.
A esquina mais famosa do prédio
“O seu escritório parece uma repartição pública, seu Affonso”, diz Gabriel Coca, estudante de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, ao entrar na sala de trabalho do emblemático administrador máximo do Copan: o síndico Affonso Celso Prazeres. Uma figura generalesca, fria e lacônica, mas que emanava certa sensibilidade no olhar e nas poucas palavras que escolhia usar.
Em contrapartida, há Edyr Sabino, morador do Copan há mais de cinquenta anos. Por enquanto, só o que se precisa saber de sua personalidade é isso: Edyr Sabino é morador do Copan.
Dono de um pensamento metódico e de uma retórica aprimorada, discursa com mais facilidade, naturalidade e, principalmente, paixão — mostrando-se, assim, uma pessoa muitas vezes contraditória, mas ainda assim aberta. Por exemplo, ao responder durante a entrevista qual era sua parte favorita de morar no prédio, foi rápido e claro: “Gosto da praticidade de estar perto de muita coisa, sendo tudo mais fácil”.
Edyr Sabino não foi nada prático em sua última empreitada no prédio: comprou dois apartamentos colados, quebrou a parede que os separava e construiu sua casa a partir da vontade de ser especial. E como se já não bastasse de idas e vindas, há, aqui, a maior surpresa: hoje, Edyr mora em uma das quitinetes do edifício.
Affonso possui 82 anos, enquanto Edyr ainda está com 65. Mas não são apenas 17 anos que os separam. Se esta reportagem fosse um romance épico, ambos seriam as vossas nêmesis, os arqui-inimigos que foram amigos de infância e hoje não se suportam. Mas, feliz ou infelizmente, trata-se da vida real — e Affonso e Edyr não são apenas personagens tridimensionais interessantes, são pessoas complexas e difíceis de captar.
Apesar do sobrenome, Affonso não parece mais carregar tantos prazeres ao comandar o Copan. Basta comparar entrevistas antigas com a conversa que teve conosco para notar que o atual síndico do prédio mostra-se uma pessoa esgotada.
Matheus Arroyo
Em 2016, foi ao Museu da Pessoa, na cidade de São Paulo, e deu um depoimento sobre sua vida e sua relação com o prédio. Alegre respondeu às perguntas de maneira simpática e à vontade, principalmente, inclusive citando que o Copan era sua vida. Para nós, em 2021, um ano e oito meses após o início da pandemia de covid-19, foi curto e grosso: “Não tem relação de carinho, cheguei em 1963 e estou aqui desde então”.
A verdade é que não é fácil ser síndico de um prédio, qualquer que seja ele. Mas ser o administrador central do maior edifício da América do Sul, com mais de 1.000 apartamentos para serem cuidados, torna o trabalho ainda mais desafiador. São 28 anos dedicados à gestão condominial e ele não pensa em parar. Apesar de nos parecer reativo e estar na defensiva em muitas das questões que levantamos, não hesita em dizer que, se depender dele, continuará como síndico. Se faz isso por prazer, não sabemos; é um senhor fortaleza e impenetrável.
Narciso acha feio o que não é espelho
Ao chegarmos à Avenida Ipiranga, 200, local com CEP próprio (01046–010) de tão grande e pomposo, um museu de grandes novidades se abriu para nós. Tudo ali possui uma história, um mistério, várias recordações. Cada estaca de madeira das paredes da galeria carrega cheiros e memórias das mais diversas pessoas com as mais diversas crenças, valores e origens que passaram por lá. O Copan é, antes de tudo, um centro cultural — e, consequentemente, uma panela de pressão.
Edyr chegou ao prédio em 1966; Affonso em 1963. Quando se mudaram para lá, São Paulo possuía pouco mais de 3 milhões de habitantes — hoje, são quase 13. Viram a ditadura militar, viram os protestos sangrentos no Centro, as Diretas Já e a utópica redemocratização. Chegaram por lá quando ainda se falava “Copan” e não “O Copan” — o artigo define muita coisa. São muitos anos dedicados a um mesmo universo, o que torna natural a existência de conflitos, sejam eles internos ou externos. Affonso e Edyr sintetizam muitas das questões de todo o contexto envolvido com o prédio — desde opiniões administrativas até questões ideológicas.
A rivalidade de ambos funciona como se fosse controlada por um maestro poderoso de uma orquestra sinfônica — é tudo quase poético, ensaiado, encaixado. Affonso fala de Edyr como Edyr fala de Affonso. Arriscamos dizer que um é o combustível do outro, sem exageros ou romantizações.
Durante as entrevistas, tratavam um do outro com ironia e desleixo, mas não conseguiam ficar mais de dois minutos sem voltar a citá-los. Se para Edyr todos os problemas do prédio — que, na opinião dele, são muitos — são culpa de Affonso, para Affonso todos os problemas do prédio são culpa de moradores como Edyr.
A Biologia diria que é uma relação simbiótica; a Psicologia diria que se trata de uma obsessão, sem dúvida; os físicos diriam que os opostos se atraem e os matemáticos, que “menos com menos é mais”. Mas nós, jornalistas, atentemo-nos ao claro: o Copan, em toda sua desarmonia harmônica, reside na relação de Edyr e Affonso — dois lados de uma mesma moeda.
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Um bairro cheio de almas tão vazias
“O que eles chamam de declínio eu chamo de diversificação”, disse para nós, em entrevista, o jornalista e escritor Chico Felitti, autor dos livros “Ricardo&Vânia”, “A Casa”, “Elke — Mulher Maravilha” e “Rainhas da Noite”.
O declínio do Centro de São Paulo — e consequentemente do Copan — acontece, principalmente, a partir dos anos 70. Novos centros sócio-culturais começam a surgir em outros cantos da cidade, além de outros pontos industriais espalhados, fazendo com que a região central perdesse sua característica mais marcante: ser um espaço agregador, síntese de uma cidade e população.
Com a eventual saída de fábricas e indústrias da região, o Centro tornou-se um bairro em transição, acostumando-se à nova realidade que se abria. Outrora conhecido por ser a casa dos ricos e suas fortunas, agora se tornaria a residência de novos tipos sociais.
Por consequência, a região via-se, então, abandonada pelo dinheiro, pela população e pelo poder público — que nada fez para combater a tragédia que se anunciava. Assim, a rápida mudança do ambiente, potencializada pelo intenso processo de esvaziamento e degradação urbana apresentado, transformou a região em um epicentro de histórias clandestinas.
O bêbado e a equilibrista
Chico Felitti, nos disse que, em sua pesquisa para a produção de seu último livro, “Rainhas da Noite”, entrevistou muitas travestis que trabalharam no Centro de São Paulo nos anos 80 e 90. “Eu conheço profissionais que tinham vinte quitinetes lá, era um verdadeiro Império do Sexo. Elas voltavam da Europa e compravam os apartamentos no Copan em espécie, dinheiro vivo”, afirma.
É senso comum dentro do imaginário coletivo paulistano que o prédio — e todo o Centro — nas décadas de 70 e 80 foi invadido pela economia informal — tráfico de drogas e prostituição. A sensação, para uns, era de um verdadeiro abandono. Para outros, o completo oposto.
A verdade, porém, é que o Copan foi, por muito tempo, o espaço possível para que a parcela mais marginalizada da sociedade estivesse no Centro — e, aqui, a ambiguidade é bem-vinda. “Declínio do Copan porra nenhuma. Era só gente que até então não tinha dinheiro para fazer isso que começou a fazer”, desabafa Chico Felitti.
Ainda há Copan
Questionar sempre é bem-vindo. O Copan, hoje, é lar de muitas pessoas, mas a história contada lá atrás já não cabe em 2021. Depois do forte processo de gentrificação que a região central da cidade passou, principalmente após os anos 2010, há uma evidente homogeneidade entre os residentes do edifício — pertencentes às classes A e B da sociedade. Infelizmente faz parte da nossa realidade, tal como a resistência.
Nos postes e paredes da cidade, é muito comum ver manifestações artísticas e cartazes com os dizeres “Amar em tempos de ódio é um ato revolucionário”. E isso se mostra perceptível com apenas uma visita ao Copan. Os problemas existem, os embates não acabaram, a indiferença ainda reina. Mas há sempre espaço para a resistência. Uma videolocadora sobreviveu à pandemia! Há bares, restaurantes, cafés por lá — e os sons e ruídos dos copos brindando reverberam pelos corredores anunciando: Extra! Extra! Há alegria no Copan.
Afinal, o Copan é o reflexo do país. É o Brasil concentrado em apenas um CEP, 1.160 apartamentos e 32 andares. Um lugar habitado e invadido por contradições e paradoxos. Mas que escolhe, sempre, a Esperança. “Conheci meu marido no Copan”, lembra Chico. “Ele morava no 27º andar e eu no 28º. Dividíamos o elevador porque lá os elevadores atendem de dois em dois andares. E começamos a nos falar por bilhetes embaixo da porta”, finaliza.
Todos os caminhos nos levam ao Copan; e o Copan nos leva para onde quisermos.