De Clarice a Carolina de Jesus, conheça cinco escritoras essenciais para a representatividade feminina na literatura brasileira
O Brasil se despediu de Lygia Fagundes Telles com os mais sinceros alentos a seu legado cultural e literário. Além da produção excepcional, Lygia será lembrada pelo aspecto da representatividade feminina na literatura e cultura brasileira. Muitas mulheres, porém, ainda são subestimadas pela história literária nacional. Vale destacar que, por 80 anos, a ABL não contou com mulheres em seus quadros.
Júlia Lopes de Almeida, Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Maria Firmina dos Reis e Rachel de Queiroz são exemplos de mulheres responsáveis por obras que merecem ser sempre relembradas. Celebrar escritoras é ainda mais importante em um contexto de superação das assimetrias de gênero. Distintas pela época e conjuntura social em que viveram, todas se assemelham no papel de representatividade feminina na literatura do Brasil.
Júlia Lopes de Almeida literatura
A despeito de ter sido a única mulher entre os idealizadores da Academia Brasileira de Letras, foi impedida de ocupar uma cadeira na instituição e participar das reuniões. Argumentava-se que, por não haver mulheres na Académie Française de Lettres, elas também não poderiam ser admitidas na Academia Brasileira, que seguia o modelo europeu.
Quem ocupou seu lugar na ABL foi seu marido, Filinto de Almeida – também escritor, mas de obra menos destacada que Júlia. Como forma de reparação, foi tardiamente homenageada no aniversário de 120 anos da instituição.
Júlia Lopes tinha ideias progressistas para a sua época: defendia a abolição da escravatura, a república, o divórcio, a educação formal de mulheres e os direitos civis. Seu romance A Falência figura desde 2019 na lista de leituras obrigatórias do vestibular da Unicamp, fator que vem divulgando mais sua produção literária.
Carolina Maria de Jesus
Nascida em Minas Gerais, habitante de uma favela em São Paulo, empregada doméstica, catadora de papel e mãe de três filhos. Carolina Maria sobreviveu à fome, ao medo, às falsas acusações e ao preconceito. Os escritos que viriam a se tornar o célebre Quarto de Despejo foram feitos em papéis que Carolina encontrava na rua. A obra, que há pouco também figurava entre as leituras selecionadas para o vestibular da Unicamp, relata as angústias de se viver em uma favela, revelando a realidade do país e do governo vigente.
15 de julho de 1955
Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.
Eu não tinha um tostão para comprar pão. Então eu lavei 3 litros e troquei com o Arnaldo. Ele ficou com os litros e deu-me pão. Fui receber o dinheiro do papel. Recebi em 65 cruzeiros. Comprei 20 de carne. 1 quilo de toucinho e 1 quilo de açúcar e seis cruzeiros de queijo. E o dinheiro acabou-se.
O destaque ao nome de Carolina Maria de Jesus é resultado de muita resistência e luta para diversificar, em perspectiva de gênero, raça e classe, os nomes de relevância da literatura nacional. O Instituto Moreira Salles conta com a exposição Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros.
Clarice Lispector
Além de ser o nome mais conhecido dentre os destacados na reportagem, Clarice Lispector é também uma das maiores escritoras do século XX. Além de escritora, o que considerava um hobby, Clarice era jornalista, tendo sido colunista no Correio da Manhã, periódico carioca. Tem origem ucraniana, nascida na aldeia de Tchetchelnik, mas logo deixou seu país devido à Guerra Civil Russa.
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Sua produção é estudada em diversas perspectivas acadêmicas até hoje, pois suas obras eram intimistas, psicológicas, sociais, filosóficas e existenciais – abrangendo, portanto, diversas áreas do conhecimento. A ficção de Clarice vai além de espaço, tempo e personagens, contando também com um monólogo interior.
Maria Firmina dos Reis
Negra e crítica do regime escravocrata, Maria Firmina criou a primeira escola “mista” do país, na qual meninos e meninas ocupavam o mesmo espaço. Considerada uma grande aberração na época, a iniciativa não perdurou muito, tendo sido encerrada em 3 anos.
Foi professora pública e ativista pela educação e na luta antirracista – em um tempo, lembremos, que nem mesmo a Lei Áurea havia sido assinada. “Úrsula”, grande obra de Maria Firmina, foi lançada em 1859.
Detalhes e estudos sobre a vida pessoal de Firmina ainda são relativamente escassos – nada que nos impede, entretanto, de ressaltar a história de superação de uma mulher negra que alcançou o sucesso num contexto social tão adverso.
Rachel de Queiroz
Foi a primeira mulher eleita na Academia Brasileira de Letras. Quando publicou O quinze, aos dezenove anos, sofreu crítica contundente de Graciliano Ramos:
“Seria realmente de uma mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça. Não há ninguém com esse nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado.”
A obra rendeu a Rachel um prêmio da Fundação Graça Aranha.
Foi jornalista, tradutora e teatróloga, além de ativa na militância do Partido Comunista do Brasil. Ocupou a cadeira nº 5 na ABL, vencendo por 23 votos. Além disso, foi a primeira mulher a receber o Prêmio Camões.
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A questão atual é a dificuldade de introduzir a literatura feminina na vida das pessoas. “Eu tenho esse costume de me dedicar no mês de março à leitura de autoras, embora, é claro, que eu leia mulheres o resto do ano também” – diz Isabella Lubrano, do canal no YouTube “Ler antes de morrer”. Essa é uma importante mobilização, uma vez que o contexto atual dificulta, de certo modo, o incentivo à leitura.
Boa parte dos grandes nomes que retomamos aqui, todos com riquíssimas histórias, não contam com o devido reconhecimento de suas trajetórias, e muitas vezes são ofuscados por homens com carreiras bem menos célebres. Ainda que o cenário venha mudando – em razão do engajamento feminista e do reconhecimento de questões identitárias -, é sempre bom relembrar carreira e obra de mulheres, das consagradas nos clássicos às escritores independentes.