Futebol feminino ainda é pouco desenvolvido no país-sede da Copa; saiba como o Mundial pode representar avanços na política de gênero do país
Em meio a polêmicas, indícios de corrupção e até acusações de pagamento de suborno à FIFA, a Copa do Mundo de Futebol de 2022, a ser realizada no Catar, já tem mascote, data e estádios definidos. Será a primeira vez que um país do Oriente Médio sediará os jogos. O Catar não possui um time de destaque global, uma vez que o esporte tem pouca adesão a nível nacional. Muitas iniciativas foram empreendidas pelo governo catari para desenvolver melhor o futebol no país, mas apenas na modalidade masculina. No caso do futebol feminino, não podemos constatar o mesmo entusiasmo.
Até a escolha como sede do mundial, o maior marco do futebol catari havia sido a contratação de Pep Guardiola, então volante, pelo Al-Ahli em 2003. Porém, desde que venceu a campanha para abrigar a edição de 2022 da Copa do Mundo, o Catar se mostrou empenhado em reverter essa situação. A contratação de estrelas para os times do país é uma feição desse investimento. Dudu, atual meio-campo do Palmeiras, e Romário, ex-seleção brasileira, são exemplos de jogadores que já passaram por lá.
Progresso e atraso, lado a lado
Uma conquista inédita da Copa Asiática, torneio de nações mais importante do continente, foi um bom indicativo de novos ares para a seleção nacional. É bom para todos que o time masculino do Catar venha se desenvolvendo, mas isso não significa que a modalidade feminina receba o mesmo cuidado e acompanhe esse crescimento.
Mesmo sendo um país mais aberto em políticas de gênero quando comparado às demais nações árabes, a evolução da atuação das mulheres no futebol catari é lenta e tardia, dado que a primeira partida oficial da seleção feminina, sem grandes reconhecimentos, deu-se apenas em 2010. Além disso, as mulheres não podiam acompanhar jogos e torneios dentro dos estádios no país – isso até a Copa de 2022 e o surgimento de um projeto de incentivo à modalidade.
Por se tratar de um torneio mundial, o Catar tomou iniciativa e liberou, pelo menos durante o período da Copa, a participação do público feminino durante as partidas, que até então era veemente proibida. Essa liberação também engloba as iranianas, foco de uma recente polêmica envolvendo a presença nos estádios. Em março de 2022, um grupo de mulheres foi impedido de acompanhar a disputa entre Irã e Líbano no Reza Stadium, em Mashhad, cidade iraniana. Mesmo com os ingressos em mãos, as torcedoras não puderam acompanhar a partida válida pelas Eliminatórias Asiáticas.
Vale ressaltar que, mesmo com a abertura ao público feminino, é exigido que se cumpram uma série de regras para que possam acompanhar os jogos. As mulheres devem ter “cuidado com suas vestimentas”, não exibindo pernas e ombros, além de sentarem-se com os pés no chão e não demonstrarem nenhum tipo de afeto ou intimidade com um homem dentro de um estádio.
Políticas de inclusão copa
Já o projeto Gneration Amazing, liderado por Nasser Al Khouri, representa um papel fundamental na inclusão da mulher no esporte e, por consequência, na sociedade catari. Juntamente com Samuel Eto’o, ex-jogador e um dos embaixadores do projeto, o foco de Nasser é montar uma seleção feminina e qualificar a igualdade de gênero no país. Além disso, o projeto auxilia na quebra de restrições históricas que vigoram na liberdade individual de mulheres em países mais conservadores como o Catar.
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Em entrevista à ESQUINAS, a jornalista e assessora de imprensa do Museu do Futebol Fernanda Zalcman comentou sobre algumas políticas, a cargo da FIFA, organizadora máxima do futebol global, que poderiam ser tomadas para a promoção do futebol feminino na sociedade catari. “Lembrei da Copa nos Estados Unidos, em 1994, quando foi exigido ao país-sede a criação de uma liga feminina. Por que a FIFA não exigiu o mesmo do Catar?”, destaca Zalcman. “Sinceramente, acredito que agora está nas mãos das ONGs e instituições levantar as vozes da mulheres, dar mais visibilidade a elas. Esse é o melhor caminho”, completa a jornalista.
Mesmo assim, Fernanda se mostrou otimista com as perspectivas do futebol feminino no Catar, considerando o contexto e possibilidades locais: “Pensar em uma seleção de alto rendimento, de alto nível seria algo a longo prazo. Mas acredito que uma seleção pequena ou semi-amadora, minimamente profissional, possa vir a se consolidar com a ajuda dessas instituições. Ele [projeto Gneration Amazing] já está fazendo a diferença. Já é um grande passo para um país que não tem praticamente nada”.
Ela alerta, no entanto, que só estamos discutindo o assunto pois o Mundial de 2022 coloca o país em evidência: “Se a Copa não fosse lá, talvez a gente não estivesse falando do que houve no Catar”. Neste caso, mal saberíamos de iniciativas como Gneration Amazing, ou mesmo que mulheres ainda estavam proibidas de frequentar estádios.
Legado e pós-Copa
Fernanda também afirma que a Copa tende a deixar uma missão a ser cumprida: com as atenções voltadas para o Catar, espera-se que o país invista mais na modalidade feminina, visto que o governo já tomou uma posição ao abrir os estádios para as mulheres durante o período de jogos no Mundial. Além disso, Zalcman ressaltou a importância do papel da imprensa para a consolidação de um futebol feminino no país: “A gente, enquanto jornalista. precisa continuar com essa fiscalização depois de 2022. Não podemos esquecer o Catar depois da Copa.”
Para Michelle Giannella, apresentadora do programa Gazeta Esportiva e gerente de esportes da TV Gazeta, as mulheres têm ganhado cada vez mais espaço no futebol e a abertura do público feminino aos estádios no Catar é mais uma comprovação desses avanços. “É um processo em que aos poucos vamos conquistando e fazendo acontecer”, conta a apresentadora.
Giannella lembra que a crescente da presença de mulheres nos estádios não se limita apenas à arquibancada, uma vez que foi confirmada a atuação de árbitras na Copa de 2022: “O Catar servirá de exemplo porque, mesmo sendo um país mulçumano, teremos mulheres apitando um jogo de futebol disputado por homens. Tratando-se de um país no qual existem restrições para a atuação feminina, isso representa um grande passo”.
Michelle teme pela pertinência das novas políticas de gênero no Catar no período após o Mundial, mas destaca a importância das concessões: “Não acredito que seja permanente. Mas, sim, é um primeiro passo que o Catar está dando, pois estimula não só as mulheres de lá a participarem do esporte, mas sim do mundo todo. É algo que faz todas brilharem os seus olhos. Talvez um dia os estádios sejam abertos permanentemente ao público feminino, mas acredito que não seja algo que irá mudar do dia para a noite. Tudo é um processo conquistado aos poucos”.