Após hiato de dois anos, Marcha da Maconha, tradicional passeata pró-legalização, está de volta para a Paulista. É o primeiro ato no governo Bolsonaro.
Após dois anos de hiato em razão da pandemia de covid-19, a primeira Marcha da Maconha realizada durante o governo de Jair Bolsonaro seguiu o mote “Guerra é genocida, legalização é vida”. Os organizadores destacam a luta do movimento contra a ascensão da extrema-direita e afirmam ter reunido 100 mil manifestantes na Avenida Paulista neste sábado, 11 de junho.
Entre o mar de gente e de fumaça que tomou a Paulista, diversas bandeiras foram levantadas. Os perfis dos manifestantes eram dos mais variados, reunindo idades, classes sociais e orientações políticas diversas. Todas as reivindicações, porém, convergiam em duas causas: a questão da legalização da maconha como política de saúde, passando por uma revisão do entendimento atual de segurança pública.
Lutamos pela descriminalização pra promover uma política de desencarceramento. Droga não é um problema de segurança pública, é um problema de saúde. (Carlos “Carlão” Raposão, colaborador da Marcha da Maconha)
queimando a largada
Por volta das 16h20, o bandeirão que estava pendurado entre as árvores da calçada do Parque Trianon foi trazido para o meio da Avenida. Misturadas ao verde da paisagem, as letras garrafais agora estampavam o meio da Paulista com uma palavra de ordem: “Legalize já!”
Com o acender de sinalizadores verdes e os gritos de protesto em prol da legalização e contra o atual governo, a marcha rumo à praça da República começa a descer a Avenida. A pauta era uma só, mas os motivos para estar ali variavam bastante.
‘coisa de vagabundo’
A Marcha da Maconha atravessou a Paulista pacificamente. Apesar da festividade dos manifestantes, pairava nos arredores um clima de tensão. Nas calçadas, nos carros, na fila de acesso ao MASP e no terraço dos shoppings, olhares com estranhamento fitavam os manifestantes. Apesar de levantamento de 2021 da Exame indicar que o uso da maconha medicinal é aprovada por 78% dos brasileiros, a modalidade recreativa da maconha ainda é amplamente rejeitada. Em pesquisa de 2017 para a Gazeta do Povo, o instituto Paraná Pesquisas constatou que 70,9% da população é contrária à legalização da maconha.
J.B., enfermeira de 67 anos que preferiu não ser identificada – por “medo da mídia manchar seu nome” – , defende que a maconha “é coisa de vagabundo”: “Criei meus filhos direito, não para serem marginais. Se meu filho aparece usando isso daí, desço-lhe a porrada”.
A Polícia Militar fazia o cordão de contenção e segurança ao redor dos manifestantes. Antes mesmo do início da concentração, viam-se rondas subindo e descendo a Avenida, guardas de trânsito parados nas principais esquinas e um batalhão da tropa de choque posicionado na calçada do Parque Trianon. Observando e filmando tudo de longe, falavam pouco, mas eram alvo frequente de protestos da passeata. Esporadicamente, os manifestantes entoavam um coro de “Ei, polícia! Vai tomar no **”.
Política de genocídio
O termo genocídio esteve fortemente presente nos coros e cartazes que tomaram o ato. Muitos dos presentes não receavam em associar a atual política de estado em relação à maconha com a Lei Nº 2889/56, que tipifica o crime.
Em conversa com ESQUINAS, o advogado André Barros alegou que “a polícia comete genocídio quando sobe na favela”. Carlos Daniel, também advogado, completou o raciocínio: “A gente acha que tem que mudar a política do Estado, que criminaliza o usuário. O Estado usa a política de combate às drogas para matar a população negra na periferia.”
A organização da Marcha da Maconha declarou solidariedade aos familiares e amigos das vítimas da operação na Vila Cruzeiro, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Sob alegação de captura emergencial de líderes do Comando Vermelho, a ação da polícia durou cerca de 12 horas e acabou se tornando a segunda mais letal operação da história da cidade do Rio de Janeiro, deixando mais de 20 mortos.
Veja mais em ESQUINAS
“Só Por Hoje”: usuários relatam recuperação da dependência química na pandemia
Boca do Lixo: Como império cinematográfico dos anos 60 virou a cracolândia
Rostos da Marcha
Para Carlos Daniel, que é também ativista do movimento LGBTQIA+, estar presente no ato não é exclusividade do usuário da maconha, mas sim de todos que enxergam no tema uma questão de política pública: “Eu não sou maconheiro. Mas o combate a essa política de criminalização às drogas também é uma luta minha, é de todos nós. Se a gente acha que o Estado tem que mudar, a gente quer uma revolução, essa também é uma causa nossa”.
Pintavam figuras públicas no meio da multidão de anônimos. Carlão, um dos principais organizadores do evento, afirmou que se alegrava ao “ver uns políticos no meio da galera”.
Entre os ilustres, estava o vereador Eduardo Suplicy (PT – SP), que celebrou os recentes avanços científicos e jurídicos sobre a matéria: “É uma causa justa, vemos isso pelas descobertas no campo da ciência. Estou aqui solidário por essa luta, pela liberdade de produção de remédios com a cannabis, a legalização do auto-cultivo e da possibilidade de todas as farmácias poderem vender a cannabis em conta”.
Legalização e acesso
Apesar de legalizada em 2021, a maconha para fins medicinais no Brasil ainda é muito cara devido à burocracia da regulamentação e produção. O médico José Luiz Schiavon, diretor de pesquisa da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC), informa que mais de 20 mil pacientes são tratados com maconha no país. Contudo, tanto para produção quanto importação, o preço a se pagar é muito caro e o acesso difícil, enquanto em outros países, nos quais a maconha medicinal é menos restrita, a realidade é outra.
Para Schiavon, a pesquisa e o combate ao preconceito contra a maconha é essencial para que a população se informe e pavimente o caminho para a legalização. Nesse cenário, o consumo se torna mais consciente e barato. Apesar de legalizada, a regularização da maconha no Brasil ainda é muito restrita e o acesso a quem realmente precisa acaba prejudicado.
A questão da legalização da maconha no Brasil é uma questão de soberania nacional. Isso fere princípios constitucionais e econômicos de livre concorrência. A gente pode produzir o óleo no Brasil, mas só com a erva produzida em outros países. Isso é um absurdo. A maconha tem que ser nossa, ela tem que ser brasileira. (André Barros, advogado)
D.R., 50, está desempregado desde que foi solto do sistema penitenciário em 2016. Ele conta que passou um ano e oito meses detido em razão de ser usuário. Para D.R., irrita a hipocrisia com a qual a sociedade lida com a questão: “Quero liberdade para poder fumar dentro da minha casa. Meus vizinhos reclamam, alguns deixam de ter uma boa convivência contigo, te tacham de vagabundo só porque descobrem que você usa maconha”.
Tráfico e guerra às drogas
Com a maconha criminalizada, os efeitos adversos são muitos. Além do encarecimento do produto e queda na qualidade, o principal efeito é o fortalecimento do tráfico.
A guerra às drogas redireciona tempo e recursos da polícia para combater o consumo de uma substância que por si só não causa crimes violentos. De acordo com estudo do professor Alex Kreit, da Thomas Jefferson Law School, menos da metade de todos os crimes violentos dos Estados Unidos foi solucionado em 2011 – enquanto isso, a polícia de Nova York gastou 1 milhão de horas de trabalho em prisões por posse de maconha.
Além do desvio de esforços das forças policiais, a demonização a maconha causa a lotação dos presídios. No Brasil, o cenário também é preocupante e mal direcionado.
Para Laís, do movimento 4:20 Coletivamente, “a legalização está totalmente ligada à questão das minorias, já que quem tem dinheiro para fumar uma coisa boa e etc não acontece nada. A legalização não é uma questão de só poder fumar, mas também uma reparação de desigualdades”.
Nesse sentido, a Marcha da Maconha do último sábado não foi apenas pela legalização da substância, mas mesclou-se com uma gama de reivindicações e debates – norteando-se sobretudo com a garantia de direitos previstos na Constituição.