A paraense vende brigadeiro e outros doces diariamente em uma bicicleta personalizada, ideia que surgiu inicialmente para pagar sua faculdade e se transformou no sonho de abrir uma loja
Samara Fronckowiak Silva da Cunha, mulher trans, de 26 anos, é estudante e proprietária de um espaço que vende brigadeiro e outros doces na avenida mais movimentada da cidade de São Paulo: a Paulista. Contudo, em um lugar com tantas pessoas, é preciso se destacar em meio aos outros vendedores da região, fato que, diferentemente com outras pessoas, não foi problema para uma mente tão criativa quanto a de Samara.
A empreendedora saiu do Belém do Pará com o intuito de começar sua graduação em Fisioterapia, já que é apaixonada pelo corpo humano, e tentar uma nova vida em São Paulo.
Atualmente, com um local de vendas estruturado e clientes já fixos, Samara diz que deve muito aos doces. Com o dinheiro que lucra, consegue pagar a graduação, o aluguel e ainda enviar uma quantia para ajudar a mãe, que reside em Belém. “É uma conquista. Eu vim do interior de Belém, em que muitas vezes a gente não tinha o que comer. Hoje, eu posso me dar ao luxo de comer uma pizza, comprar um vestido. Tudo graças aos doces”.
História do brigadeiro
Samara começou a vender brigadeiro na Av. Paulista em 2018 para custear a mensalidade de uma faculdade de Fisioterapia. Ela conta que, quando chegou à São Paulo para estudar, ainda possuía os seus documentos desatualizados, com o seu nome de batismo, e que isso representou um entrave para que ela conseguisse um emprego formal.
“Eu vim para São Paulo para fazer faculdade e eu precisava trabalhar. Só que, até então, eu não tinha atualizado os meus documentos. Quando eu ia fazer entrevista de emprego, os entrevistadores viam uma pessoa, mas no nome era outra. Então, eles acabavam não contratando.”
Precisando “se virar”, ela conta que viu na venda de doces uma possibilidade de garantir o seu sustento. “Num domingo passeando por aqui, eu vi uma senhora perto do MASP com um tupperware vendendo brigadeiro. Foi algo que, por algum motivo, me chamou muita atenção. Uma luz. Eu fui lá e comprei um. No final de semana seguinte, eu já estava aqui vendendo.”
A fim de se destacar na multidão e de despertar a curiosidade dos pedestres, Samara adotou roupas e sapatos coloridos desde o início. O visual chamativo rendeu frutos. No primeiro dia, todo o brigadeiro que havia feito esgotou em menos de duas horas, o que a motivou ainda mais.
Aos poucos, e atendendo a pedidos de clientes, ela começou a vender bolos e biscoitos, além dos tradicionais brigadeiros.
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O dia a dia
Durante os dois primeiros anos, o negócio funcionou só de sexta, sábado e domingo. Nos outros dias, a dona se dedicava aos estudos. No entanto, em função da pandemia e para compensar o menor número de vendas, o horário de funcionamento foi estendido. Ela conta que, nessa época, a rotina pesou bastante. “Eu começava às 11 horas e acabava por volta das 18, todos os dias. Eu percorria toda a Paulista, descia a Augusta e ia até a Praça Roosevelt, umas três vezes por dia, a pé. Só que estava me cansando muito.”
A ideia da bicicleta veio com a intenção de diminuir esse cansaço. O plano inicial era ficar andando pela avenida e oferecendo o brigadeiro. Contudo, Samara logo se informou da possibilidade de ter um espaço fixo na calçada junto à Prefeitura. Dessa maneira, a bike virou um meio de transporte para que ela fosse de sua casa, no bairro da Liberdade, até a Paulista, além de mostruário e local de armazenamento dos doces.
Ela conta que já conquistou uma clientela entre os frequentadores da região e que as vendas correm bem. Mesmo se formando fisioterapeuta no final do ano, Samara pretende conciliar a venda de doces com a profissão, além do desejo de alçar maiores objetivos: “Eu tenho vontade de ter uma loja aqui na avenida e outra na Augusta, lugares em que comecei com a venda. E quem sabe em outro estado, na minha cidade…”
A maior dificuldade que a comerciante encontra no dia a dia são as alterações climáticas: “Tem dia que aqui tem as quatro estações. No calor, tem que pensar que o doce pode derreter. Já quando chove, é uma correria para colocar tudo debaixo do plástico.”
A transição
Samara conta que começou o seu processo de transição aos 18 anos, idade que considera tardia para tal. “Como era só eu, eu iniciei o processo sozinha. Conforme fui realizando a transição, eu fui me mostrando aos poucos para as pessoas”, diz.
Durante a infância, lembra que era alvo de comentários e olhares diferentes: “As pessoas diziam que eu andava rebolando, que eu tinha a voz fina. Mas, para mim, eu era normal, era o meu jeito, nasci daquele jeito, não tinha o que mudar”. Por conta disso, afirma que o período escolar foi sua pior fase: “Eu chorava muito na escola. Para mim, eu era uma pessoa normal, mas os outros não me viam assim”.
Aos 10 anos de idade, antes de sua transição, Samara se assumiu gay a sua mãe. “Ela falou assim: ‘Eu te entendo, te respeito e continuo sendo a sua mãe. Mas, a única coisa que eu te peço é que não use roupa de mulher'”. A empresária acredita que a mãe já sentia que ela era uma mulher transgênero. “Eu acho que ela já sentia, já sabia. Como ela falaria isso do nada?”.
A partir disso, a jovem conta que as coisas foram acontecendo naturalmente: começou a usar batom, roupas íntimas femininas, shorts, tudo gradativamente. “E foi assim, aos poucos. Não foi um processo radical”.
Diversidade e preconceito
O preconceito se revelou uma forte adversidade no dia a dia de trabalho de Samara. “O mais difícil, para mim, é estar aqui vendendo meus doces, um homem chegar e perguntar se eu faço programa e o quanto cobro. Em momento algum parece que estou vendendo meu corpo. É nítido que estou vendendo meus doces”, conta a moça.
Ela explica que, atualmente, há mais casos de mulheres trans que dispõe da opção de fazer programa ou trabalhar com outra coisa. Porém, mesmo optando pela segunda alternativa, a vendedora ainda lida com clientes que elogiam seu corpo, encaram-na e fazem perguntas insinuantes durante a venda.
“A sociedade foi educada a ver uma mulher trans, travesti, seja lá como ela gosta de ser chamada, na noite. Hoje, quando vêem uma travesti trabalhando honestamente, não querem comprar, pois não acham certo que tenhamos um espaço desse”, reflete Fronckowiak.
A dificuldade em lidar com a discriminação não se restringe à seu ambiente de trabalho. Samara menciona um caso em que foi visitar sua família em Belém e, apesar de ser acolhida pela maior parte dos parentes, escutou o comentário de um tio dizendo: “Não adianta porque vai continuar sempre sendo homem”.
“O nome consta muito, ele é muito importante”, acrescenta Samara, que pontua esta como uma questão que influencia bastante na forma como é vista dentro do mercado de trabalho.
Samara revela que, mesmo após um ano de sua mudança de dados no cartório, com CPF e identidade atualizados, ela ainda recebe cartas com seu nome de batismo. O reflexo dessa situação nas vendas se mostra em situações como na efetivação do pagamento, dado que, no início de sua empreitada, sua máquina de cartão possuía o nome anterior. Samara, com vergonha, dizia que era do namorado. “É constrangedor. E no mercado de trabalho é pior ainda, pois tudo é questão de tempo, mas ainda há muita coisa para mudar. O preconceito é muito persistente” , explica.
Apesar de trabalhar na capital paulistana, ambiente marcado por diversidade, casos como esse realçam o quão difícil é o cenário para aqueles que integram o grupo LGBTQIA+. “O homem e a mulher são muito mais que um órgão genital. A gente tem que entender que as pessoas mudam. Elas podem nascer em um corpo e não se identificar com ele. O mais importante é ter respeito e empatia sempre. O mundo seria melhor se as pessoas praticassem mais isso”, finaliza Samara Fronckowiak.