A PRINCIPAL PREMIAÇÃO DO CINEMA MUNDIAL AINDA PECA NA REPRESENTATIVIDADE DE MINORIAS E NÃO AGRADA SEU PÚBLICO, MESMO APÓS GARANTIA DE MUDANÇA.
O Oscar está em sua 95ª edição mas, nem por isso, fica imune de críticas e polêmicas. Em diversas edições, das mais antigas até a atual, é percebida a mínima presença de grupos minoritários.
Em 1940, por exemplo, Hattie McDaniel, primeira atriz negra a receber uma estatueta, foi proibida de sentar na mesma mesa que seus colegas de elenco brancos. Já na edição atual, nenhuma mulher foi indicada à Melhor Direção. Esses tipos de situações fez com que a pressão popular sob a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas aumentasse nos últimos anos, resultando em esforços da premiação para ser mais inclusiva.
Em 2022, foi lançado um manual de regras sobre inclusão e representatividade, que só será obrigatório a partir de 2024. Ele está dividido em quatro categorias e todos os indicados à Melhor Filme deverão conter duas delas, sendo elas: representatividade na tela, equipe diversa (em altos cargos), oportunidades para principiantes na carreira e diversidade no marketing e publicidade.
Essas medidas ainda são tímidas, pois abrangem apenas uma categoria e têm critérios muito amplos. “O consumidor de filmes de hoje não é mais o mesmo dos anos 50, portanto, a questão da representatividade, do espectador conseguir se identificar com o filme, não é mais algo que pode ser ignorado pela Academia”, afirma a historiadora e professora Vanessa Bortulucce, 48 anos. Ela afirma ainda que, apesar de necessária, uma regulamentação precisa ser pensada com cuidado, de modo a não engessar demais a diversidade.
Inconsistências nas indicações
Após a revelação dos indicados ao prêmio deste ano, um estado de choque (e insatisfação) dominou a Internet. O filme “Mulher-Rei”, apesar de toda a sua repercussão e elenco de peso, não foi indicado a nenhuma categoria.
“Como nós somos historicamente desfavorecidos, pessoas brancas já estão tão confortáveis de não nos verem que nem se impactam tanto”, afirma Maria Cecília Dallal, estudante e mulher preta de 17 anos. A estudante pensa que o entretenimento e a arte mostram muito da nossa realidade. Logo, essa não indicação, somada ao esquecimento por parte da Academia de outros filmes com grande representatividade preta, como “Não! Não Olhe!”, “Till – A Busca por Justiça” e “Saint Omer”, reflete o racismo intrínseco da nossa sociedade.
Quanto à presença de pessoas não-brancas na premiação, é possível notar a tentativa de avanço nos últimos anos, especialmente após a campanha #OscarsSoWhite (#OscarTãoBranco, em português). Ela começou em 2016 com uma mobilização nas redes sociais por conta da falta de indicados negros nas principais categorias, mesmo com representantes de peso como Will Smith, Idris Elba e Samuel L. Jackson na disputa, e levou até a um boicote de parte de convidados como Spike Lee e Jada Pinkett Smith. Esse movimento levou à promessa da Academia de se comprometer com a diversidade de seus membros, mas dados das edições recentes afirmam que a enorme discrepância entre a participação de minorias raciais e de brancos ainda é presente.
No que diz respeito aos principais prêmios, sabe-se que, em toda história do evento, apenas seis negros foram indicados ao prêmio de Melhor Diretor, sem nenhuma vitória. Asiáticos acumulam um total de dez indicados, com três vitórias, números ínfimos se considerada a presença de brancos na categoria.
Já em Melhor Filme, apenas dois protagonizados majoritariamente por negros levaram uma estatueta: “12 anos de escravidão”, em 2014, e “Moonlight”, em 2017. O único filme de produção asiática a ser premiado até hoje é “Parasita”, em 2020. Neste ano, pelo menos, eles tem um forte (e favorito) concorrente representando-os.
“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, cuja trama aborda uma família de imigrantes chineses, está indicado a 11 categorias. A protagonista, Michelle Yeoh, concorre à Melhor Atriz e Ke Huy Quan e Stephanie Hsu à Melhor Ator e Atriz Coadjuvante.
Vanessa destaca a indicação de Michelle pelo que ela significa para a comunidade asiática, principalmente às mulheres, frequentemente estereotipada e reduzida a papéis de figuração em filmes de gêneros muito específicos, como os de luta e artes marciais. Ela continua dizendo que, apesar de poder haver mais representação, a edição deste ano do Oscar está bastante instigante nesse sentido.
Por outro lado, apenas dois atores negros foram indicados em toda a edição: Bryan Tyree Henry, por “Passagem” e Angela Bassett, por “Pantera Negra: Wakanda para Sempre”.
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Representatividade LGBTQIA+ no Oscar
No que condiz a representatividade LGBTQIA+, Eldra La Fonte, estudante de jornalismo e coordenadora da frente LGBT+ da Faculdade Cásper Líbero, diz não acompanhar o Oscar com frequência, pois os concorrentes (inclusive em 2023), não “conversam” com a sua existência e comunidade. “A indústria do entretenimento é cara, e quem tinha poder e dinheiro naquela época para investir e consumir eram esses homens. Por isso, a representatividade, durante toda a história da estatueta, não foi muito visada e o espaço de minorias negligenciado”, argumenta.
Marlon Brando, considerado bissexual, foi o primeiro ator da comunidade a ganhar um Oscar. Entretanto, só assumiu ter se relacionado com outros homens após sua segunda vitória. O único a concorrer ao prêmio, já abertamente gay, foi Ian Mckellen em 1998.
Nos prêmios de atuação femininos, como melhor atriz, somente Jodie Foster venceu, duas vezes, mas não era assumida. Em contrapartida, Angelina Jolie, Lady Gaga e Kristen Stewart foram indicadas mesmo após se revelarem parte da comunidade.
Já na estatueta para coadjuvantes, Ariana DeBose, ano passado, fez história ao ser a primeira vencedora queer declarada da categoria. Eldra, em nossa entrevista, expôs sua convicção de que, caso fossem assumidos, alguns dos vencedores não teriam sido nem indicados.
Quanto à identidade de gênero, é importante ressaltar que Elliot Page foi o único ator transgênero a ser indicado ao Oscar, porém de Melhor Atriz, em 2008, antes de sua transição. Logo, é possível dizer que nenhuma pessoa trans assumida ganhou ou foi nomeada a uma estatueta.
Por outro lado, a inconsistência na escolha de atores para interpretar figuras LGBTQIA+ e nomeá-los é recorrente: três intérpretes cisgêneros (Eddie Redmayne, Hilary Swank e Jared Leto) já foram indicados por personagens transsexuais que interpretaram. Na edição deste ano, Cate Blanchett e Brendan Fraser, que concorrem a melhor atriz e melhor ator respectivamente, interpretam personagens da comunidade mesmo não sendo parte dela.
Segundo Eldra, essas representações são válidas, porém são problemáticas: “É um remédio para uma ferida que não fecha, pois já temos muitos atores [da comunidade] reconhecidos que poderiam ser escolhidos [para esses papéis]. Não é só sobre representação, precisamos também ser valorizados. E ganhar dinheiro com nosso trabalho faz parte disso.”
O Oscar melhorou muito de anos para cá, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. Isso se evidencia no fato de que, nesta 95ª edição, dos 20 indicados às categorias de atuação, somente uma pessoa, Stephanie Hsu, nomeada a atriz coadjuvante, é queer.
A presença feminina
Um dos pontos de discussão mais em alta, em meio a disseminação do movimento feminista em Hollywood, diz respeito à presença feminina nos prêmios. Uma das principais questões é o fato de que, até 2016, o grupo de membros votantes da Academia era composto em 75% por homens, número questionável dada a importância das mulheres na ascensão do cinema mundial e o destaque de atrizes, produtoras e diretoras entre o público.
Quando fazemos um comparativo quanto à presença delas em categorias mistas, apenas sete foram indicadas para o prêmio de Melhor Direção, contra 468 homens, e apenas três levaram o prêmio. Vale ressaltar que, de sete concorrentes, apenas uma delas não era branca, a chinesa Chloé Zhao, vencedora da categoria em 2021.
Na edição atual, essa questão persiste, visto que nenhuma concorrente feminina está cotada para esse prêmio. Em Melhor Fotografia, Mandy Walker tornou-se a terceira mulher na história a disputar o prêmio, por “Elvis”.
Apesar das tentativas da premiação de se tornar mais representativa, ainda há um longo caminho a percorrer para garantir a igualdade racial, sexual e de gênero de forma a retratar corretamente todas as subjetividades da indústria cinematográfica. Neste ano, enquanto contamos com uma forte presença asiática, produções negras, feitas por mulheres ou pela comunidade LGBTQIA+ aparentam ter sido negligenciadas pela Academia.