Como a continuidade de casos de escravidão evidencia a permanência de uma lógica colonialista no Brasil
Aurora, Garibaldi e Salton são as três maiores vinícolas da rota do vinho, ou Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. No final de fevereiro de 2023, mais de 200 funcionários terceirizados que atuavam no serviço de carga e descarga de uvas dessas empresas, foram resgatados de condições análogas à escravidão.
Em relato à TV Globo da Bahia, os funcionários alegaram que a maior parte deles vieram da Bahia recrutados pelo empresário Pedro Augusto de Oliveira Santana – que está solto, após ter pago uma fiança de R$ 40 mil. Esses funcionários também expõem que eram degradados e tratados com violência e tortura por armas de choque, spray de pimenta e cassetetes. Esse caso aponta uma grande ironia por parte da Salton e da Aurora, que apresentavam pactos empresariais e recebiam certificações de empresas exemplares em como tratar funcionários e de “Excelente Lugar Para Trabalhar”.
A Salton é signatária do documento Pacto Global da Organização das Nações Unidas (ONU), no qual defende um ambiente de trabalho saudável e uma jornada de trabalho digna para todos, além de manter o compromisso de erradicar o trabalho forçado e escravo na modernidade. Em março de 2023, após o resgate dos mais de 200 trabalhadores das vinícolas, a Aurora, Garibaldi e Salton foram anunciadas a pagar uma indenização de R$ 7 milhões por danos morais individuais e coletivos, sendo destinado aos trabalhadores R$ 2 milhões, o equivalente a cerca de R$ 9 mil para cada.
Valdete Souto Severo, doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, descreve como os trabalhadores devem receber a indenização, contudo, também devem ser acolhidos a fim de compreender o que passaram, para futuramente serem direcionados a trabalhos cujas condições estejam adequadas à Constituição.
De acordo com Valdete, a lógica que sustenta a continuação de situações precárias e análogas à escravidão atualmente permeia na cabeça da pessoa subjetiva a esta relação, a modo que a juíza relata que já testemunhou diversos trabalhadores se desculparem com os empregadores por demandar direitos que deveriam ser garantidos a todos pela lei. A doutora expõe como ilustração das sequelas da colonização e escravidão. “Esse comportamento é muito simbólico do que representa a cultura colonial e escravista e a forma como ela invade a racionalidade, a subjetividade de quem está inserido em uma relação de trabalho”, declara.
Entre uma das principais marcas da escravidão, o historiador e cientista político Rafael Barbosa da Silva explica como a mentalidade colonial perpetua na atualidade, em contexto da formação da sociedade econômica brasileira e o protagonismo do agronegócio. Para Rafael, as práticas análogas à escravidão das vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton demonstram a incapacidade do Brasil superar as vocações agrárias e agrícolas, as mesmas estabelecidas durante a época da colonização – o que também espremeria a dispensabilidade da alteração, atualização e melhorias das condições de trabalho.
“O Brasil aposta ainda em ser um um grande fazendão de soja, de boi. E, muitos dos nossos problemas se relacionam ao trabalho e aos problemas ambientais, que obviamente estão ligados a isso. Então, eu apostaria nessa matriz agrária exportadora por um lado, mas o que é essencial aqui são as relações de trabalho, nós somos um país marcado pela escravidão.”
Segundo o historiador, os episódios das vinícolas exemplificam as relações de trabalhos nos tempos de hoje como sequelas da escravidão, uma vez que o trabalho manual, especialmente a mão de obra negra, vale menos que o trabalho intelectual.
“Eu acredito que tenha essa conexão escravocrata e em grande parte ela explica essas questões que estão por trás do trabalho escravo, afinal de contas, se você olhar para essas pessoas que vivem em situações análogas a escravidão, elas carregam na pele o estigma, e isso tem profunda conexão com o nosso passado colonial”, afirma.
Raízes históricas perpetuadas no presente
A recorrência de casos de trabalho análogo à escravidão atualmente atingem a mídia, mas não assustam. Eles são apenas um sintoma da construção do país: “A sociedade brasileira é marcada pela estrutura hierárquica do espaço social que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os seus aspectos”, afirma Marilena Chauí em “Mito Fundador e Sociedade Autoritária”.
Como destaca Chauí, a sociedade brasileira possui uma divisão social extremamente marcada, que é reforçada por relações de poder pautadas pelo período colonial. Essas mesmas relações são responsáveis por naturalizar as opressões físicas e/ou psíquicas contra os grupos minorizados. A autora ainda destaca que a convivência dominativa independe de sua posição legal: “O outro jamais é reconhecido como sujeito nem como sujeito de direitos, jamais é reconhecido como subjetividade nem como alteridade”.
Valdete Severo complementa a teoria de Chauí por justificar esse tratamento em raízes históricas: “No Brasil, a relação de trabalho assalariado não se dissocia da lógica escravista que persistiu como discurso oficial do Estado por quase 400 anos. Admitir a terceirização, por exemplo, ou a formação e exploração de trabalho através de falsas cooperativas, é parte dessa mesma racionalidade, pela qual quem vive do trabalho é considerado cidadão ou cidadã de segunda categoria, alguém que deve ser grato por ter trabalho”.
A retrospectiva histórica mais pontual para demarcar a perpetuação desta relação de mando-obediência é a Lei Áurea. A lei é responsável por abolir a escravidão em 1888, porém não apresenta nenhuma política pública de reinserção social de afrobrasileiros, apenas aponta a liberdade “Art. 1°: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brazil.” e a solicitação de cumprimento pelas autoridades da nova legislação “Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário.
Manda, portanto, a todas as autoridades, a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a cumpram, e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém”. Somente a promulgação da lei não altera a racionalidade escravagista arraigada na sociedade brasileira, a Juíza completa: “As instituições de Estado podem coibir, fiscalizar ou punir quem age dessa forma, mas sem alterar a cultura, os casos tendem a se repetir.”
Como consequência de um desenvolvimento desigual, principalmente na região Sul do Brasil – partindo da riqueza dos centros urbanos em detrimentos das populações exploradas no campo, como é o caso das vinícolas –, temos o colonialismo interno, que se caracteriza pelos efeitos resultantes deste vínculo autoritário. “Em outras palavras, nas áreas ‘arcaicas’ ou ‘tradicionais’ de nossos países ocorre o mesmo que entre os países colonizados com relação às metrópoles”, pontua Rodolfo Stavenhagen em “Sete Teses Equivocadas Sobre A América Latina”.
Rafael Barbosa, assim como Valdete, coloca que o colonialismo interno no Brasil, mais especificamente no caso das vinícolas, é marcado pela preservação do pensamento escravocrata.
“Essa escravidão em parte se deu no período colonial, mas em parte também por 76 anos no Brasil independente, e isso com certeza explica as nossas relações de trabalho até hoje, na medida em que o trabalho manual tem estigma muito forte, o trabalho braçal por oposição ao trabalho intelectual e o trabalho negro valendo menos. Por nós não termos superado esse passado escravocrata, porque afinal de contas, nós vivemos mais sob a égide da escravidão do que fora dela.”
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A continuidade do trabalho escravo no Brasil
O Ministério do Trabalho e Emprego mantém uma “lista suja”, conhecida como “Cadastro de Empregadores Autuados por Trabalho Escravo”. Criada em 2003, ela registra os autuados pelo governo por utilizarem mão de obra análoga à escravidão e as consequências incluem restrições de acesso a crédito, de participação em licitações públicas, impacto na reputação e ações judiciais, com a lista como prova em processos contra os empregadores. Ainda assim, o documento é insuficiente para combater o trabalho escravo no país.
Para a juíza do Trabalho Valdete Severo, o Brasil enfrenta desafios como o restabelecimento de órgãos de fiscalização e prevenção, desmantelados desde 2016, e o reconhecimento, no âmbito do Poder Judiciário, dos efeitos de expropriação e penalização, estabelecidos pelo artigo 243 da Constituição Federal e 149 do Código Penal, respectivamente.
O trabalho escravo é regulado principalmente pela Lei nº 13.315/2016, que alterou o artigo 149 do Código Penal, considerando crime: “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.
Essa norma contém brechas que prejudicam a sua aplicação, desde a falta de clareza na definição de “condições degradantes” e “jornada exaustiva”, até a dificuldade na comprovação do trabalho escravo, que depende de testemunhas e evidências documentais e muitas vezes ocorre em áreas remotas ou de difícil acesso. Tais fatores frequentemente levam à impunidade dos criminosos, o que explica o contínuo crescimento da lista suja do trabalho escravo.
“Há vários estudos demonstrando que, mesmo em hipóteses de claro cometimento do crime previsto no artigo 149 do Código Penal, o resultado das ações é a absolvição, a conversão de penas em prestação de serviços à comunidade ou outras medidas alternativas”, diz Severo. Ela explica que não defende aprisionamento, que em regra nada resolve. De acordo com a juíza, o Brasil é um dos países com maior população carcerária e o efeito disso não é a ressocialização ou a melhoria do convívio social.
Porém, para ela, o crime de escravidão deveria causar uma reação efetiva do Poder Judiciário, a fim de coibir novas situações do gênero. “Ou seja, uma condenação que também sirva de recado aos demais tomadores do trabalho. Não é isso que tem ocorrido no Brasil”, conclui.
O poder da bancada ruralista
Atualmente, um dos maiores inimigos do Brasil contra a luta ao trabalho análogo à escravidão é a bancada ruralista. Com um projeto de lei apresentado inicialmente em 2013 (o PLS 432/2013), o foco dos ruralistas agora é em afrouxar ainda mais a definição da lei que protege os trabalhadores nesses casos. A ideia do projeto é de excluir completamente as condições degradantes de trabalho e a jornada exaustiva como características estabelecidas de trabalho análogo à escravidão.
Em 2017, o Ministério do Trabalho e Emprego publicou uma portaria que retirava essas duas definições do conceito de trabalho análogo ao de escravo, mas com a forte pressão da sociedade, voltaram atrás. Indiscutivelmente, ambas as definições são violações de direitos humanos, que podem causar danos graves à saúde do trabalhador.
O historiador, Rafael Barbosa, acredita que a bancada ruralista tem um poder de decisão muito forte no Brasil e que em 2017, todas as flexibilizações na lei de trabalho análogo a escravidão foram feitas como forma de “afago” a esse setor.
“O governo Temer fez uma série de flexibilizações em relação ao trabalho, mas sobretudo nessa questão do trabalho análogo do escravidão, como uma espécie de afago ao setor ruralista. Como nós, infelizmente, temos um congresso dominado por uma bancada fortemente ligada ao agronegócio, esse tipo de pressão consegue ser feita, eles acabam conseguindo alterar a lei e driblar a fiscalização”, ele diz.
Além disso, Rafael acredita que isso tem uma ligação muito forte com o autoritarismo principalmente pelas raízes do coronelismo que estão presentes no Brasil atual.
“Nós temos uma política fortemente autoritária, com um viés coronelista ainda muito forte em muitas partes do país. Isso não foi superado, porque se fizermos uma genealogia do poder no Brasil, vamos chegar a algumas poucas famílias que há séculos dominam seus respectivos estados”, complementa.
Assim, por vivermos em uma sociedade completamente desigual e que, segundo o historiador, “não superou as questões ligadas à escravidão”, resolver essa questão pode durar anos. É preciso um forte empenho por parte do Estado, do sistema jurídico e da sociedade como um todo em mover essas estruturas dominantes.
“Nós temos marcas profundas da escravidão, é uma questão muito recente na história do Brasil, estamos falando de 135 anos, essa luta ainda vai durar por muitas décadas. A ideologia racista persiste, porque é impossível mudar essa mentalidade de uma hora para outra, e é difícil mudar toda essa herança escravocrata em algumas décadas após a abolição da escravidão”, ele finaliza.