Da exposição à hipocrisia da elite: a trajetória do cadáver de Jacinta Maria de Santana - Revista Esquinas

Da exposição à hipocrisia da elite: a trajetória do cadáver de Jacinta Maria de Santana

Por Gabriela Guido, Isabelle Breda, Marcela Guimarães e Sofia Valim : julho 13, 2023

Imagem da capa do jornal "Progresso" de 23 de junho de 1929.

Declarada como morta indigente nas ruas paulistanas, o corpo de Jacinta, uma mulher negra, ficou em exposição e foi violado por décadas dentro da Faculdade de Direito da USP

Violada. Jacinta Maria de Santana foi exposta e utilizada em trotes de estudantes na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Pouco se sabe sobre a vítima; foi encontrada morta pela polícia ao lado da Estação da Luz no centro de São Paulo. O corpo de Jacinta foi entregue ao professor de Medicina Legal Amâncio de Carvalho – que dá nome a uma rua e, até o fim de março deste ano, era homenageado em uma sala no Largo São Francisco. Embalsamada pelo professor e deixada na sala de aula, o seu corpo era frequentemente violado pelos estudantes com a realização de atos sexuais e o uso dela como cabide e para trotes dos estudantes, os quais eram, em sua maioria, homens brancos da elite paulistana da época.

A agressão que Jacinta sofreu é muito mais profunda do que parece. O médico legal Amâncio também foi presidente emérito da Sociedade Brasileira de Eugenia. Defendia nada mais, nada menos que o branqueamento da população. O “experimento” realizado por ele pode ser entendido como uma ação com base nessa ideologia racista – ou seja, a oportunidade de estudar o corpo humano e a ciência com base na inferiorização da população negra.

O apagamento da história negra na mídia

A história veio à tona só após Suzane Jardim, historiadora formada pela USP, estudar a mídia negra e encontrar o periódico “Progresso”, um veículo tradicionalmente negro, de 1929 que falava do enterro do corpo de Jacinta. Nem os estudantes atuais da faculdade sabiam dessa história, que foi contada pela Ponte Jornalismo. E a história também não foi reproduzida por outros veículos jornalísticos fora daquele período.

jacinta

Imagem da capa do jornal “Progresso” de 23 de junho de 1929.
Disponível no acervo de Imprensa Negra da Universidade de São Paulo.

Os atos de violência contra a integridade de Jacinta refletem a desumanização do negro por completo e a hipocrisia levantada pelos próprios futuros defensores da justiça da época. Segundo o estudo sobre a vida da vítima, ela era conhecida tanto pelos integrantes da universidade quanto pela mídia como Raymunda, tratada feito personagem. O apagamento, sim, retrata a dor dos semelhantes da vítima e o fato da problematização do caso somente ter recebido a devida atenção após período descomunal.

A história de um corpo violado e também popularmente conhecido como ‘múmia’ mostra que a obliteração da história negra nos meios midiáticos é um fenômeno que tem ocorrido ao longo de décadas desde o início da veiculação global e se manifesta com mais clareza do que se pode imaginar. A mídia desempenha um papel crucial na construção das narrativas sociais e na forma como os eventos históricos são apresentados ao público. No entanto, muitas vezes o negro ainda é negligenciado, distorcido ou marginalizado, contribuindo para a perpetuação do ainda tão presente racismo e da desigualdade mesmo em encargos imparciais.

“Romantizamos a violência contra nós como se fosse algo cotidiano, natural. Ficamos muito dependentes [das pessoas brancas]. É sempre uma pena que esses veículos não tenham metade do alcance da mídia tradicional”, comenta a historiadora.

Esse apagamento histórico é controverso não somente pela carga discriminatória, mas também pelas contribuições humanas para com a sociedade; não é só a violência física que demarca a injustiça construída por ele. Aqueles que desempenharam papéis significativos na história são frequentemente omitidos de grandes livros didáticos, documentários e quaisquer programas televisivos, diminuindo ainda mais a visibilidade e o impacto, principalmente ao envolver grandes ocupações e suas respectivas profissões, removendo relevância ou existência. Ao abordar a história da imprensa negra, Suzane ainda ressalta que as autodenominadas ‘pessoas de cor’ só subiam em palanques para discursar sobre causas raciais, mas nunca sobre seus feitos de relevância em qualquer área sequer.

Quando o negro não era retirado dos holofotes, passava a ocupar o cargo estereotipado e negativo que sempre carregou como fardo, sendo este nas publicidades ou nos principais veículos. A mesma história se repetia de forma simplista, limitando-as a estereótipos racistas, como o empregado doméstico, o criminoso, o atleta ou o sexualizado – o qual foi abordado na agressiva exposição de Jacinta.

A análise da história da vítima não se afasta da atualidade ao perceber que a data da descoberta não completa um século. O crime contra o negro ainda é um crime displicente ao colocar na balança o peso do racismo estrutural, violência policial, desigualdade socioeconômica e discriminação graças à falta de visibilidade que, sorrateiramente, perde o engajamento e a conscientização do público pela pobre abordagem dos problemas cruciais que afetam a sociedade em um todo. Hoje, a imagem de Jacinta serve como símbolo de resistência e luta pela raça.

A violação de corpos negros pela elite branca

Em 1850, o abolicionista e ativista Luís Gama foi submetido a uma proibição de frequentar a Universidade de Direito de São Paulo devido à sua origem étnica negra. No entanto, ele conseguiu assistir às aulas apenas como observador, e sua busca por conhecimento permitiu-lhe desenvolver habilidades jurídicas que o levaram a atuar na defesa dos escravos negros. É interessante revisitar esse evento histórico ao narrar a história de Jacinta, que foi exposta durante um longo período de tempo e vista pelos alunos como um mero alvo de brincadeiras de calouros. Jacinta não foi expulsa e era negra; ela só estava lá por estar morta.  

A agressão sofrida por Jacinta pode ser entendida como uma ação eugênica. Essa era frequentemente baseada em preconceitos raciais, levando a abusos graves, como por exemplo o estava o uso de corpos negros como objetos de estudo, o que desrespeitava a dignidade e os direitos dessas pessoas. A eugenia reforça o racismo e a soberania branca, é uma ideologia racista que estudou os corpos negros como biologicamente inferiores e como algo que deveria ser “eliminado” da sociedade. 

 A sua história foi apagada, Suzane Jardim foi a primeira a procurar, a questionar e investigar o passado da mulher que a sociedade, autoritária e racista, tentou esconder. Nenhum aluno ou professor ao menos pensou quem era a pessoa por trás da ‘múmia da faculdade’, ninguém pensou em sua família, em sua história; Jacinta simplesmente não era vista como ser humano.

Ao longo da história brasileira, os negros e as suas culturas não foram valorizados, foram sempre colocados em escanteio em prol dos interesses da classe branca dominante e opressora. Isso resultou em uma narrativa histórica que negligenciou e marginalizou a contribuição e as experiências dos negros ao longo dos séculos.

A sociedade autoritária reforça essa  desvalorização cultural e a noção de que certos grupos são superiores e merecem mais reconhecimento, enquanto outros são subjugados e considerados menos importantes. Jacinta era usada para trotes universitários, era vista como uma aberração. Essas práticas discriminatórias serviam como entretenimento para a elite branca.

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O racismo recreativo que até hoje perdura na sociedade brasileira

Tal uso do corpo de Jacinta para o entretenimento dos estudantes oriundos da elite branca brasileira representa um desprezo e uma condescendência não só pela mulher negra sendo violentada mas, especialmente, pela dignidade da população negra brasileira. Essa é uma das formas de expressão do “racismo recreativo”, conceituado pelo advogado Adilson Moreira no livro homônimo da coleção Feminismos Plurais. Expressões como “é só uma piada” ou “é só uma brincadeira” geralmente são usadas para diminuir a gravidade e a ofensividade do discurso racista que esse tipo de entretenimento gera. “O racismo recreativo é uma política cultural que utiliza o humor para expressar hostilidade em relação a minorias raciais”, diz Moreira em entrevista à Carta Capital. “Elas [As pessoas que praticam o racismo recreativo] conseguem então propagar a ideia de que o racismo não tem relevância social”.

Não só o corpo de Jacinta foi usado para trotes estudantis, mas também foi estuprado, usado como castiçal e cabide e já foi encontrado no começo da avenida Brigadeiro Luís Antônio com o braço quebrado, segundo matéria da Ponte Jornalismo sobre o assunto.”Tratava-se não de um crime, mas sim de uma magnífica pilhéria”, foi o que disse a polícia sobre encontrar o corpo da mulher negra deixado pelos estudantes no meio da via pública. Isso retrata com fidelidade o tratamento da sociedade e dos funcionários da faculdade ao saberem do que era feito com Jacinta.

Isso nos lembra dos “zoológicos humanos”, ou melhor, das “exposições” de pessoas negras feitas pelos europeus nos séculos XIX e XX, que tratavam esses indivíduos como selvagens e animais a levantarem curiosidade. Afinal, tudo isso é a serviço do entretenimento de elites brancas de ascendência europeia.

Com a morte de Amâncio de Carvalho em 1929, a viúva Emília da Silva Carvalho decidiu dar a Jacinta um “honroso enterro cristão”. O episódio, ocorrido no Cemitério de São Paulo com o apoio do Centro Acadêmico XI de Agosto, movimento estudantil dos estudantes da faculdade, teria reunido parte da elite paulistana e chegou aos jornais da época como uma “homenagem aos pretos de São Paulo”. Isso ilustra veementemente a narrativa de cordialidade racial criticada pelo conceito de racismo recreativo de Moreira e reforçada por pensadores da época, como Gilberto Freyre.

A ignorância das crenças e da religião de Jacinta para a realização do velório cristão ainda retoma a violência do mito fundador da construção da sociedade brasileira descrito pela historiadora Ynaê Lopes dos Santos. Não enterrada com seu devido nome – era chamada de Raimunda – o enterro reforça a ideia de uma sociedade brasileira racialmente democrática e pacífica, que não identifica os processos de desigualdade na formação do país por conta da mestiçagem. Mesmo sendo convidados representantes de coletivos negros, Suzane Jardim aponta que eles não estavam no local para homenagear Jacinta e, sim, para agradecer a bondade da elite branca pelo enterro honroso à indigente negra. E, mesmo ela elite negra, o evento Jacinta ainda foi chamada de ‘a múmia do Largo São Francisco’ – isto é, como uma aberração – pela mídia.

Editado por Mariana Ribeiro

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