O combate ao racismo no futebol se preocupa mais com os eventos midiáticos e esquece das violências e negligências institucionais
O esporte é uma instituição construída de valores, linguagens, horários e espaços. A partir do século XIX, com a imposição colonialista, a relação racismo e esporte se intensificou, servindo como instrumento de contenção revolucionária. “O esporte, historicamente, se relacionou com estratégias nefastas de afirmação racial. Até hoje há uma convenção euro-estadunidense que exclui países periféricos dos processos deliberativos”, comenta Neilton de Souza Ferreira Júnior, doutor em Educação Física e Esporte pela Universidade de São Paulo (USP).
Dentro dessa lógica, o esporte serviu de legitimação do ideário racista, como forma de atenuação de movimentos anti-imperialistas. Por meio da imposição de práticas corporais euro-estadunidenses e constante afirmação de supremacia. Em termos gerais, o melhor desempenho é consequência de sua superioridade humana.
Tentativa de Proibição
O futebol foi cultivado pela elite boa parte do tempo, entretanto, com seu grande sucesso foi difícil resistir às pressões sociais. Uma das tentativas de prevalecer a elitização do esporte foi a criação do ingresso, o simples ato de comprar um papel para assistir o jogo foi algo pensado em afastar os pobres, e consequentemente negros, das arquibancadas.
“Para impedir o avanço veloz de agremiações mais pobres, a Liga Metropolitana, composta pela elite do futebol, decidiu proibir em seus estatutos a inscrição de ‘pessoas de cor’ por seus clubes filiados”, segundo o livro “Os Donos do Espetáculo: Histórias da Imprensa Esportiva do Brasil”, escrito pelo jornalista André Ribeiro. O livro retrata mais uma tentiva de dissociar e excluir a imagem do negro no futebol.
No Brasil, o primeiro jogador negro a participar de uma partida oficial foi o meia Miguel do Carmo. Em meados de 1900, o atleta foi um dos fundadores da Ponte Preta, tradicional clube da cidade de Campinas. Carmo deixou um legado que abriu portas importantes para futuras gerações.
Saindo do interior paulista, o Bangu foi o percursor no Rio de Janeiro em 1905. Já no Rio Grande do Sul partiu do Grêmio a inicativa de incluir negros em seu plantel.
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Cenário Racial
O estudo do Observatório da Discriminação Racial em parceria com a Nike, realizado em 2023, descobriu que 41% dos jogadores negros que atuam nos principais campeonatos brasileiros afirmam ter sofrido racismo. Um dos casos mais marcantes é de Mário Lúcio Duarte Costa, mais conhecido como Aranha, ex-goleiro do Santos, que sofreu injúria racial durante a partida entre Santos e Grêmio pelas oitavas de final da Copa do Brasil de 2014.
O goleiro procurou comunicar o árbito Wilton Pereira Sampaio, que optou por não paralisar a partida. As ofensas continuaram até o término do jogo e Aranha fez questão de denunciar o caso em entrevista pós jogo. “Quando começou os sons de macaco pedi para o câmera filmar. Fiquei puto! Quem joga aqui [Arena do Grêmio] sabe, sempre tem racista na torcida. Está dado o recado.”
Segundo Ferreira, o esporte é uma convenção concorrencial que pressupõe uma igualdade de condições entre os sujeitos, mas que não se apresenta materialmente e discursivamente. A desigualdade no ambiente esportivo, onde a maioria dos atletas negros não possuem poder financeiro gera atraso no desenvolvimento, por dificultar a rotina adequada de um jogador profissional.
O relatório do Observatório aponta que não só os jogadores sofrem racismo, mas qualquer profissional do futebol pertencente a raça negra. “A minha carreira encerrou no momento em que fiz a denúncia, já imaginava que teria alguns riscos e realmente se concretizou”, diz Márcio Chagas, ex-árbitro de futebol que sofreu racismo.
Chagas é formado em educação física e atuou por 15 anos como árbitro profissional. Em 2014, durante um jogo em Bento Gonçalves, Márcio, após a partida, encontrou o seu carro amassado e com cascas de bananas por cima do capô.
O juiz procurou a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e denunciou o caso, logo em seguida o presidente da federação o procurou e pediu para falar diretamente com ele e evitar a denúncia pública. “Ali percebi que havia uma proteção aos racistas”, completa.
“O racismo no esporte se enxerga cotidianamente. Não são episódios ou eventos, o que dificulta flagar. É uma forma de manutenção e de administração do sofrimento de corpos que aparentemente não merecem um reconhecimento da sua humanidade”, afirma Ferreira.