A indústria da moda é um dos setores mais poderosos do mundo, porém, tem sido pouco explorada pelos estudos econômicos
O mercado da moda vive um momento de transformação global, impulsionado por uma série de fatores que vão desde a conscientização ambiental até as mudanças no comportamento do consumidor. Dados levantados pela ThreadUp, empresa de moda on-line nos Estados Unidos, revelam que, em 2020, 36 milhões de pessoas no país adquiriram roupas usadas pela primeira vez, um aumento notável que pode ser atribuído a diversos fatores, como a influência do TikTok e, principalmente, a pandemia. O isolamento social e a incerteza econômica levaram muitos a repensar seus hábitos de consumo, optando por alternativas mais sustentáveis e acessíveis. No Brasil, esse cenário não é diferente, e o segmento da moda circular tem se destacado como uma tendência em crescimento exponencial, com um potencial econômico significativo.
Como um dos setores mais influentes mundialmente, o mercado da moda tem uma presença notável na economia brasileira, sendo um pilar que movimenta renda para diversos negócios e gera empregos em grande escala. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), o impacto da indústria têxtil no Brasil é gigantesco, colocando o país como a 5ª maior indústria têxtil e o 4º no segmento de vestuário no mundo. Com salários médios iniciais de 1,3 mil, que podem chegar a mais de 10 mil para profissionais experientes, essa indústria é o segundo maior gerador de empregos no Brasil, de acordo com a Abit. A associação prevê a criação de mais de 300 mil novos empregos até 2025, destacando a relevância econômica do setor.
A indústria movimenta cerca de 2,4 trilhões de dólares e cresce aproximadamente 5,5% ao ano. De acordo com a Fundação Ellen McArthur, a produção de roupas nos últimos 15 anos praticamente dobrou, impulsionada pelo crescimento da classe média em todo o mundo e pelas altas vendas per capita nos países desenvolvidos.
Além do aspecto econômico, a indústria da moda também se destaca por sua influência na esfera da sustentabilidade. A crescente conscientização sobre os impactos ambientais da indústria levou ao surgimento de tendências como a moda circular e a popularização dos brechós de luxo. Esse pensamento sustentável está mudando a maneira como os consumidores se relacionam com a moda.
Projeções do Boston Consulting Group (BCG) apontam que o mercado de moda circular no Brasil pode atingir um crescimento anual de 15% a 20% até 2030. Além disso, o Instituto de Economia Gastão Vidigal, da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), prevê que o mercado de roupas usadas pode ultrapassar o varejo de moda já no próximo ano, indicando uma mudança significativa nos hábitos de compra.
A sustentabilidade também tem sido um fator-chave nesse movimento. Transações feitas em 2019, por meio de plataformas de produtos usados, pouparam a emissão de 6 milhões de toneladas de CO² na atmosfera. Esse número evidencia o impacto ambiental positivo que a moda circular pode ter, à medida que evita a produção de novas peças e reduz o desperdício.
Impacto Ecológico
À medida que a demanda por vestuário continua a crescer, as empresas do setor devem se adaptar rapidamente às mudanças do mercado, investir em pesquisa, inovação e estratégias de diferenciação e garantir que as condições de trabalho sejam éticas. Marília Piccinini da Carvalhinha (41), consultora estratégico-financeira, mentora de empreendedores e coordenadora da pós-graduação em Fashion Business na FAAP, comenta o impacto ecológico na indústria têxtil: “É difícil medir esse impacto, mas a pauta ter se tornado mais relevante na sociedade aumentou bastante a pressão sobre as marcas. Essa pressão se transforma em ações práticas de desenvolvimento de processos e de tecnologias em direção à sustentabilidade. E mostrar para os clientes essas ações é também uma forma de conquistá-los e mantê-los fiéis, gerando diferenciais competitivos.”
Essa indústria eco-friendly busca reduzir danos ambientais ao mundo, por meio da utilização de materiais orgânicos, reciclados, biodegradáveis e adoção da reciclagem de tecidos. Também tem como objetivo criar e apoiar um comércio mais consciente, valorizando o trabalho humano e práticas legais para a produção de roupas. Tentando reduzir a quantidade de lixo, resíduos, poluição e emissão de gases no efeito estufa gerados pela fast fashion e a indústria de moda tradicional, essa prática vem alcançando cada vez mais um público maior de consumidores e produtores.
O movimento sustentável e de consumo consciente considera impactos para além do ambiental, englobando, também, aspectos socialmente e economicamente responsáveis na produção de peças. Como uma alternativa ao fast fashion, a pegada sustentável prega por justas condições e salários condizentes com as horas e exigências do trabalho. Nesse cenário, grandes marcas pegam carona no hype do eco-friendly, propagando um discurso que nem sempre é seguido à risca por trás das cortinas. Marcas de departamento como C&A e Renner lançam, ocasionalmente, linhas que prometem seguir a “pegada sustentável” e divulgam campanhas de reciclagem ou economia circular. Porém, em 2022, a quarta edição do relatório do Fashion Revolution Brasil apresentou resultados não favoráveis às maiores marcas do Brasil. Na divulgação do Índice de Transparência da Moda Brasileira (ITMB) anual, foi apontado que, entre as 50 marcas analisadas, apenas 22% compartilham metas de embasamento científico em relação a impactos climáticos. Nenhuma empresa apresentou um compromisso considerável com o desmatamento zero.
Além disso, marcas de renome como a Farm, conhecida por inspirar-se na biodiversidade brasileira na criação de estampas, cobram preços abusivos, apoiando-se na justificativa da sustentabilidade e do compromisso social. Casos recentes, contudo, demonstram sua outra face: em 2021, a marca carioca foi alvo de críticas ao utilizar o assassinato da jovem negra Kathlen Romeu — baleada durante uma ação da Polícia Militar na Zona Norte do Rio — para incentivar a venda de suas peças. Kethlen, que estava grávida, trabalhava em uma unidade da franquia na cidade. O que a etiqueta prometeu em seu Instagram foi que a comissão das compras feitas no código da jovem de 24 anos seria revertida para sua família. Os internautas, entretanto, interpretaram isso como uma forma de se aproveitar da dor alheia para lucrar. A marca posteriormente se retratou pelo ocorrido.
A moda verde na prática
O custo de produção de uma peça social e ambientalmente responsável é, em sua maioria, mais alto, o que reflete diretamente em seu preço final. Marcas menores e independentes, geralmente, são as que apresentam esse valor mais alto em relação ao fast fashion, muito pela complexidade de confecção concentrada em poucas mãos, custo das matérias primas e, também, por conta de uma menor demanda. A ideia de um produto reciclado ter um menor custo, por exemplo, cai por terra quando considerado os valores do processo de coleta, seleção e da reciclagem em si — é o que aponta a marca italiana Rifó, que produz suas peças a partir de fibras têxteis recicladas. Além disso, lojas responsáveis geralmente adaptam um processo de produção ética e artesanal, repassando uma porcentagem justa do lucro à equipe de produção.
A REVER Camisaria, loja paulista que advoga por sustentabilidade e condições justas de trabalho, afirma em seu site que o objetivo da marca é desenvolver peças com “foco no design uma produção menor e mais sustentável, seja através da utilização de tecidos e insumos responsáveis ou reciclados, como também com preocupação com as pessoas envolvidas em todo o processo produtivo das peças”. O criador da marca, Christian Lopes, afirma que 60% do lucro é destinado às costureiras que o auxiliam na produção das peças. Lopes diz que os produtos REVER “pagam por uma matéria responsável e o valor justo no seu feitio”. O designer comenta, ainda, a dificuldade da produção em relação aos preços de matérias primas, que aumentaram significativamente no cenário pós-pandêmico. “A matéria prima ficou de difícil acesso após o período de pausa de produção, e o mercado ainda não conseguiu se reabastecer totalmente. Isso reflete no valor das nossas peças”, afirma Christian Lopes. Os preços atuais variam de 379,00 a 797,00 reais.
Mesmo que justos, esses preços acabam, muitas vezes, afastando o público popular do universo sustentável. A pesquisa Vida Saudável e Sustentável 2021, do Instituto Akatu, apurou que 86% dos brasileiros desejam reduzir o impacto ambiental de suas ações pessoais e que 60% dos entrevistados demonstraram disposição a pagar mais caro por marcas comprometidas com o movimento.
Contudo, as lojas de departamento seguem no topo do ranking econômico: no ano passado, a Renner reportou um lucro líquido de 191,63 milhões de reais entre os meses de janeiro e março. Para Marília Carvalhinha, o principal desafio que as marcas responsáveis hoje enfrentam é, de fato, atrair compradores: “Essas marcas geralmente têm grandes desafios em todas as etapas e tendem a ter custos mais altos e escalas mais baixas. Naturalmente, precisam viabilizar esses gastos oferecendo mais valor agregado para o consumidor final. Esse valor agregado geralmente não se sustenta apenas pelo atributo da sustentabilidade, pois nem sempre as pessoas estão dispostas a arcar com esses preços mais altos. Dessa forma, as marcas que se propõem a ter força no pilar da sustentabilidade precisam investir também em marca, design, posicionamento, entre outros atributos que representem valor para o cliente. Assim conseguem, eventualmente, vender seus produtos por um preço mais alto e, com essa margem, se mantêm saudáveis financeiramente para continuar suas operações”, aponta a mentora de empreendedores.
A coordenadora aponta que a atenção dada à sustentabilidade tem feito com que muitas empresas invistam em desenvolvimento tecnológico para baixar esses custos, que tendem a melhorar processos de produção e reduzir impactos de formas diferentes e que, enquanto a evolução tecnológica não trouxer mais sustentabilidade para toda a estrutura da cadeia de moda, será difícil viabilizar preços muito mais baixos. Hoje em dia, a maior questão está no valor capital que o lifestyle ecológico acarreta, afinal, o produto é encarecido por diversos fatores. A base de dados Pyxis constatou que, no Brasil, as classes A e B consomem cinco vezes mais a indústria da moda do que o restante da população, sendo também favorecidas no que diz respeito à moda sustentável.
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O impasse na relação do consumidor com a indústria surge a partir do momento em que as chamadas fast fashions tornam-se uma alternativa mais barata para quem busca estar por dentro do mundo da moda, enquanto os preços de marcas mais sustentáveis – apesar de condizentes com o valor de produção – não são acessíveis para todos, como exemplifica Manuela dos Anjos (20), estudante de moda no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac): “Acredito que pro nicho de pessoas que acompanham e são do mercado da moda faz todo sentido esse consumo consciente, mas entendo que nem para todas as realidades, pensando no nosso Brasil atual, possa de fato atender todas as necessidades (de alguém). Uma mãe de família, por exemplo, não tem a mesma acessibilidade e tempo disponível para ir em um brechó ou fazer a reutilização de uma peça que uma pessoa do nicho tem. Essa mãe vai buscar agilidade, fácil acesso e qualidade de produto.”
Sobre isso, Christian Lopes comenta que a discussão é mais ampla, pois com a baixa nos preços corre o risco do trabalho dos criadores sustentáveis ser desvalorizado: “Acredito que a grande questão aqui seja sempre lutar por melhores salários, que é o nosso maior problema hoje como sociedade. A questão está no ponto de que a gente não consegue grana para consumir esse tipo de peça. Eu mesmo que produzo não consigo consumir esse tipo de produto. É uma discussão muito ampla”, afirma o designer.
Alternativas acessíveis
A tendência do upcycling entra como uma medida alternativa e acessível às marcas, visto que a técnica consiste na reutilização criativa de materiais que seriam descartados ou considerados inúteis. Observa-se nos últimos anos, principalmente após a pandemia de Covid-19, uma espécie de “repopularização” dos brechós e a volta do hype da moda circular. O impacto causado pela doença na época fez inúmeros apreciadores de moda repensarem sua maneira de se vestir e enxergarem o impacto que essa indústria causa no meio ambiente, visto que o Dia da Sobrecarga da Terra vem se antecipando drasticamente nos últimos anos, ocorrendo no dia 2 de agosto em 2023.
Além disso, a pandemia foi responsável pelo enorme boom do TikTok, que reúne também influenciadores de diversas camadas para falar sobre moda: o chamado Fashion TikTok. O nicho da plataforma tornou-se um dos principais lançadores de tendências entre o público jovem que consome moda, que passou a se inspirar nos vídeos e buscar diferentes alternativas para estilizar suas próprias peças, além de adquirirem o hábito de garimpar peças de segunda mão em brechós, muitas vezes indicados por usuários do próprio aplicativo. Segundo o economista Ulisses Ruiz de Gamboa, o número de brechós aumentou em quase 50% em 2021, com um aumento de vendas de 29,6% pós-pandemia. Ele ainda afirma que é previsto para 2024 que o comércio de segunda mão ultrapasse os varejos, de acordo com a ThreadUp.
Compartilhando massivamente informações de moda, as redes influenciam consumidores que muitas vezes não têm condições para comprar determinados itens. É aí que a cultura de brechós, upcycling e moda circular entram em cena como uma alternativa econômica, ecológica e um tanto quanto cool, ressignificando a ideia de que peças são descartáveis: “Eu vejo a moda sustentável sendo algo muito maior do que apenas uma tendência, é um compromisso com o meio ambiente. Contando com a agropecuária, a indústria da moda fica em quarto ou quinto lugar das que mais agridem o nosso meio ambiente, então focar em materiais e práticas eco-friendly que provocam o repensar do ciclo de vida das peças são passos importantes”, afirma Manuela.
Como surgiu o pensamento sustentável?
A preocupação a respeito de uma moda mais sustentável e que dialogasse com as necessidades emergentes surgiu entre 1960 e 1990, sendo muito influenciada pelo movimento hippie durante o final dos anos 1960 e início de 1970, quando os adeptos começaram a se interessar por tecidos naturais e pela volta da moda mais simples e ecológica. Deixando dúvidas e descontentamento com a herança trazida pela revolução industrial, a sociedade consumidora passou a buscar novas formas de comércio que fossem mais benéficas ao meio ambiente e aos trabalhadores.
Nos anos 90, com a chegada da internet, as empresas e consumidores começaram a aderir inovações comerciais e publicitárias, assim como causas importantes, entre elas a maleficência da indústria da moda em diversos setores, que são discutidas até hoje, conquistaram seu lugar na mídia.
Durante os anos 2000, a causa se fortaleceu e novas práticas surgiram em prol do consumo e produção mais consciente. Porém, a discussão foi ganhar mais atenção somente durante os anos 2010, quando as consequências negativas do fast fashion começaram a ser mais notórias. O debate ganhou ainda mais repercussão em 2013, quando o Rana Plaza desabou, em Dhaka, capital de Bangladesh, deixando mais de 377 mortos. O edifício era composto por três andares, onde todos eram destinados à fabricação de tecidos. Mais de três mil trabalhadores estavam no prédio durante o incidente.
Seis meses antes, no mesmo local, um incêndio deixou cerca de 100 mortos, que trabalhavam em uma fábrica pertencente à rede de mercados norte-americanos Walmart. Com isso, novas discussões ganharam palco sobre o descaso de leis trabalhistas e humanitárias presentes em estabelecimentos deste cunho, como a falta de saídas de emergência para caso de incêndios, menores de idade trabalhando o dia inteiro e a lacuna de remuneração para os empregados. Essas fatores culminaram na disseminação de consumidores da moda sustentável e do slow fashion.
Marília afirma que é complicado medir o impacto direto da moda sustentável na economia, contudo, a sua popularização traz uma pressão sobre as marcas que, mais tarde, se transforma em ações e processos tecnológicos que rumam à sustentabilidade, o que acaba por gerar um laço de confiança entre consumidores e marcas. A fiscalização sobre práticas ilegais e abusivas deste mercado são fatores que também ajudam na competitividade entre produtores de moda sustentável e do fast fashion. A coordenadora ainda defende que brechós podem desempenhar um papel importante para economia, uma vez que eles maximizam o uso de um produto que já existe: “Uma peça que ainda esteja em boas condições de uso, ao ser revendida para outra pessoa, passa a ganhar um novo ciclo de vida e demorando mais tempo para virar lixo.”
O mundo da moda segue tendências cíclicas e se renova de tempos em tempos, o que percebe-se nessa recolocação dos comércios second hand e na volta do que estava em alta nos anos 2000, por exemplo, sendo um mercado de análise um tanto quanto previsível. O esperado para pessoas do meio, como citado por Christian, é que essas tendências se tornem mais inclusivas com o passar dos anos, proporcionando uma mão de obra cada vez mais justa para aqueles que produzem, assim como preços mais justos para aqueles que consomem. Enquanto isso, a valorização de estabelecimentos e artistas independentes que foquem no propósito de moda consciente faz-se necessária, exaltando também as novidades produtivas que partem destes.
Editado por Daniela Nabhan
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