Cinemateca reinaugurada: a história do maior acervo de cinema do país - Revista Esquinas

Cinemateca reinaugurada: a história do maior acervo de cinema do país

Por Luiz Eduardo de Camargo Minervino : maio 18, 2022

Foto: Luiz Eduardo de Camargo / Esquinas

Com trajetória marcada por incêndios, crises e interferências, Cinemateca Brasileira resiste como maior acervo audiovisual do Brasil

Localizada no bairro da Vila Clementina, em São Paulo, a Cinemateca Brasileira foi alvo de manchetes entristecedoras nos últimos anos. Tendo como função arquivar e exibir filmes raros e antigos, esse espaço cultural para os amantes da sétima arte tem uma trajetória marcada por descaso e más gestões, com negligências que vêm se acentuando ultimamente. A importância de uma instituição que preserve a cultura nacional, nesse sentido, acaba se desgastando ano após ano. No entanto, a reabertura da Cinemateca, efetivada na última sexta-feira, 13, indica que pode haver esperança para a valorização da cultura e do cinema brasileiros. 

Tradição e retrospecto 

A Cinemateca origina-se com nome e endereço diferentes dos atuais. Em 1940, o historiador Paulo Emílio Salles fundou o Primeiro Clube de Cinema, em São Paulo, com o qual buscava estimular o estudo e a divulgação do cinema nacional por meio de projeções, conferências, debates e publicações. Porém, o clube foi interrompido em 1941 pelo Estado Novo de Getúlio Vargas – a primeira interferência estatal na instituição. 

As atividades do clube voltariam apenas em setembro de 1947, com um arquivo fílmico ainda bem limitado. O acervo só passaria a ser expandido em 1949, quando a entidade se afilia ao Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP) e é renomeada como Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo, abrangendo cada vez mais o cinema nacional, divulgando-o principalmente por meio de mostras em parceria com outras instituições culturais. 

A partir de um desejo por maior autonomia, a Cinemateca Brasileira é finalmente batizada com seu nome atual em 1956, ano em que se desfilia do MAM e se torna uma sociedade civil sem fins lucrativos. Assim, nos anos 1960 e 70, a organização foi se mantendo em uma trama de altos e baixos, tal qual um bom filme, evoluindo seu arquivo de películas e ampliando a operação para também restaurar filmes antigos e danificados.  

Situação de penúria  

Foi uma época conturbada para a entidade. O acervo mudou de endereço diversas vezes e passou por incêndios em 1957, 1969 e 1982. Trata-se de uma fatalidade comum para projetos dessa alcunha, uma vez que lidam com materiais altamente inflamáveis. Em 1958, o fundador Paulo Emílio escreveu sobre as dificuldades de exibir filmes do renomado cineasta russo Serguei Eisenstein e, em um dos trechos do depoimento, evidenciou a falta de recursos para uma instalação de tamanha responsabilidade.  

Anteontem, dia 23 de janeiro, comemorou-se em todas as cinematecas do mundo o sexagésimo aniversário do nascimento de Serguei Mikhailovitch Eisenstein. Desde o início do ano passado a Cinemateca Brasileira projetara para esta ocasião uma retrospectiva da obra completa do cineasta russo. A situação de penúria em que se encontra, obrigou, porém, o adiamento do projeto. 

O incêndio de 1982 teve as consequências mais drásticas para o aspecto financeiro da organização. Em razão das dificuldades, a Cinemateca foi incorporada ao poder público em 1984, mesmo ano em que mudou sua sede para um antigo matadouro da cidade, onde se mantém até hoje na icônica construção de tijolos. O edifício foi elevado ao patamar de patrimônio cultural brasileiro em 1994, se integrando ao Ministério da Cultura.  

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Antigo Matadouro da Vila Clementino/ Imagem: Aurélio Becherini/Assembleia Legislativa de São Paulo
Aurélio Becherini/Assembleia Legislativa de São Paulo

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Anticlímax cinemateca

Após a instalação na atual unidade e associação ao Governo Federal, a importância do espaço apenas aumentou. Abrigando 40 mil títulos – muitos deles considerados raros, com obras que datam do final do século XIX -, o acervo audiovisual inclui filmes, telenovelas e conteúdo jornalístico. Sem falar de itens especiais, como vídeos que remontam aos primeiros registros fotográficos do país e a obra-prima Limite, de Mário Peixoto. 

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Cinemateca Brasileira/ Imagem: Alexandro Possi
Alexandro Possi

O início do século XXI na Cinemateca foi marcado pela continuidade do trabalho prévio, firmando-se como importante polo cultural de cinema por meio das mostras e restaurações de arquivo. Eventos como a Anima Mundi e o projeto “Clássicos ao ar livre” também marcaram as atividades da época. 

Foi só em meados de 2020, com as instalações inoperantes devido à pandemia, que o público geral teve noção dos estragos da falta de verba para a cultura cedida pelo Governo Federal. Os danos, entretanto, já eram irreversíveis. Em julho de 2021, um incêndio na unidade da Vila Leopoldina – onde um ano antes houve um alagamento -, resultaram na perda de um arquivo ainda hoje não contabilizado com precisão. 

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Incêndio na Cinemateca em 2021/ Imagem: Twitter @Carlos Piazza
Carlos Piazza

Crise e retomada 

O momento máximo da crise nas instalações ocorreu no dia 7 de agosto de 2020, momento em que as chaves da Cinemateca foram tomadas pela União em razão de medida estabelecida pelo então secretário da cultura, Mario Frias. A ação envolveu até viaturas da Polícia Federal, gerando repercussão internacional. Martin Scorsese, renomado cineasta, declarou que “É impossível não vincular os desastres que causaram graves danos às instalações e acervos da Cinemateca nos últimos anos à flagrante falta de apoio financeiro e institucional do governo brasileiro”.  

Desde o final de 2021, a organização é gerida pela Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC). Em 13 de maio, a SAC foi responsável pela reabertura do espaço com a exibição de A Praga, de José Mojica Marins, o “Zé do Caixão”, restaurado e editado por Eugenio Puppo. Maria Dora Mourão, presidente deliberativa da SAC, celebrou a reabertura: “Foi importante a volta dos técnicos, que são formados pela própria Cinemateca. Agora temos cerca de 40 profissionais, esperamos chegar até 50 até o fim do ano. Já tivemos 130 funcionários, na última época áurea da instituição, entre 2008 e 2013, mas o número atual vai permitir que todas as áreas voltem a funcionar bem”. 

Nova fase da Cinemateca

A noite escolhida como para o fim do hiato de 2 anos da Cinemateca não poderia ser mais providencial e simbólico: uma sexta-feira 13. O ar supersticioso da data combina com A Praga, filme inédito do mestre do ferro brasileiro José Mojica Marins exibido para as cerca de 500 pessoas reunidas em prestígio à retomada das atividades. 

Imagem da fachada da Cinemateca em sua reabertura / Luiz Eduardo de Camargo / Esquinas
Luiz Eduardo de Camargo / Esquinas

A cerimônia começou com a apresentação de algumas figuras importantes para o setor, como Maria Dora, presidente deliberativa, Eugenio Puppo, restaurador, e os filhos de Mojica, Liz e Crounel. Liz, em bate-papo rápido com ESQUINAS, explicou a importância de preservar filmes: “Quem não é capaz de preservar o passado não preserva o presente, muito menos o futuro”. Os discursos seguiram pela linha de defesa da cultura e a importância das atividades da Cinemateca, seguidos por um coro de “Fora Bolsonaro” vindo da plateia. 

A decisão de A Praga como filme inaugural da nova fase da Cinemateca foi modular. A película foi gravada nos anos 1980 de maneira quase amadora e teve seus arquivos perdidos na mesma década. Todavia, o produtor Puppo achou os negativos perdidos em um escritório do Mestre do Terror e passou a liderar um processo de regravação, restauração e até dublagem. A temível sexta-feira 13, portanto, marcou o êxito de uma película que estava fadada ao esquecimento. 

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Público assistindo ao média metragem A Praga / Luiz Eduardo de Camargo / Esquinas
Luiz Eduardo de Camargo / Esquinas

Editado por Juliano Galisi

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