Dia do Cinema Nacional: A "arte de resistência" - Revista Esquinas

Dia do Cinema Nacional: A “arte de resistência”

Por Lívia Marques : junho 20, 2020

Trajetória, fases e constantes revoluções do cinema brasileiro

“O cinema é uma arte de sobrevivência”, afirma o jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero Márcio Rodrigo. Depois de completar mais de 100 anos do seu desembarque no País, o cinema nacional reúne diversas fases e constantes revoluções.

Do desembarque às chanchadas

Em 19 de junho de 1898, o cineasta italiano Affonso Segretto registrou as primeiras imagens em movimento no Brasil. Em sua homenagem, hoje é comemorado o Dia do Cinema Nacional. Dois anos antes da data, em 1896, era feita no Rio de Janeiro a primeira exibição de um filme sem som e de caráter documental, o Saída dos Trabalhadores da Fábrica Lumière, pelas mãos dos Irmãos Lumière. “Eles tinham um estilo chamado de filmes naturais. Ou seja, filmavam o que estava acontecendo no cotidiano. Somente no século XX os cineastas entendem que se pode usar o cinema para ficção”, explica Márcio.

Nessa época, já com caráter ficcional e influenciado por Hollywood e pelo mundo pós-Primeira Guerra Mundial, o cinema nacional descobre um novo estilo: as Chanchadas. Marcando história na década de 1940, elas tentavam ser como os filmes da indústria cinematográfica norte-americana. Diferente do que muitos críticos de cinema apontam, Márcio diz que elas “não são um verdadeiro abacaxi: filmes ruins, que tentavam imitar Hollywood”. Segundo ele, era o momento em que o cinema brasileiro tentava se industrializar, com figuras emblemáticas como Carmen Miranda, que fez sucesso em Hollywood. “Elas começam com os filmes de carnaval que cantavam marchinhas da época e esbanjavam a malandragem carioca”.

Cantora e atriz, a estrela brasileira Carmen Miranda fez sucesso em Hollywood
trailer screenshot (20th Century Fox)

O professor ainda afirma: “A ironia da chanchada é pouco entendida. É um movimento que sempre foi mal estudado”. Os críticos de cinema, de acordo com ele, não entenderam o que elas representavam naquele momento, não apenas como questão cultural, mas também como um estilo capaz de fazer uma análise do Brasil e tentar implantar o sistema industrial no País.

Hollywood e os Cinemas Novo e Marginal

A influência da indústria cinematográfica estadunidense perdura até os dias de hoje no Brasil, onde “80% dos ingressos de cinema vendidos eram para filmes hollywoodianos”. Márcio diz que, em média, esse número continua atual: Já faz 100 anos que esse modelo de negócio tomou conta não só do Brasil, mas do mundo todo.”

Contra a dominação das superproduções hollywoodianas, nasce, na década de 1960, o Cinema Novo. Nessa época, surgem filmes importantes para a cultura nacional, como a adaptação do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos, pelo diretor Nelson Pereira dos Santos. Com o lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, o movimento, liderado principalmente pelo cineasta Glauber Rocha, premiado por Terra em Transe, propunha uma arte engajada, com a premissa de denunciar problemas sociais.

Capa do filme “Vidas Secas” dirigido por Nelson Pereira dos Santos
Divulgação

Uma década depois, o chamado Cinema Marginal chega como uma proposta experimental. “É um cinema de poucos recursos, mas bem mais irônico e debochado que o Cinema Novo, já que também atinge a classe média”, compara Márcio. O maior exemplo do momento é O Bandido da Luz Vermelha, dirigido por Rogério Sganzerla e baseado na história real de um assaltante de casas em São Paulo.

Capa do filme “O Bandido Da Luz Vermelha” dirigido por Rogério Sganzerla
Divulgação

Em 1970 também surgem as Pornochanchadas, que, apesar do nome, para Márcio não tinham nada de eróticas. “São comédias bem abrasileiradas com esse componente ‘pornô’”. O professor ressalta que elas apareceram em um momento de censura durante a Ditadura Militar no Brasil. “Então, a TV não podia mostrar nada. A Pornochanchada é um seio à mostra, alguém de calcinha e sutiã, homens de cueca, coisas que hoje são recorrentes na novela das nove”, explica.

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Da censura à redemocratização

Com os militares no poder, em 1969, foi criada a estatal Embrafilme, extinta em 1990, no Governo Collor. A Empresa Brasileira de Filmes S.A. foi um dos maiores canais usados pela ditadura para conversar diretamente com a sociedade. “Existia uma apropriação dos militares, que eram muito mais inteligentes que os que estão no poder hoje. Eles entendiam a arte como um caminho para se aproximar das pessoas”, conta Márcio.

Nesse momento, apesar da censura, houve muitas produções e grande parte da população foi ao cinema. Diferente do que muitos acreditam, ele afirma que “o cinema brasileiro volta a colapsar com a redemocratização e as leis de incentivo”.

Em 1985, José Sarney criou o Ministério da Cultura e a Lei Sarney, “porque  sabia que se não pensasse nos artistas naquele momento, não teria sucesso no processo da redemocratização”.

O jornalista diz que “culminou com Collor uma tentativa clara de liberdade”, em referência à década de 1990 e o Cinema de Retomada. Depois de duas décadas de problemas de apoio do governo militar, o cinema brasileiro voltava a todo vapor.

Desse período, conhecemos obras como Central do Brasil (1998), que proporcionou uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Para Márcio, a retomada do cinema nacional trouxe algo importante: a pluralidade de temas.

Capa do filme “Central do Brasil” dirigido por Walter Salles
Videofilmes e Sony Pictures Classics

“Arte de sobrevivência”

“O cinema é uma arte de sobrevivência. No século XIX, diziam que havia o risco de acabar e ele se reinventou. Nos anos 1920, ele era mudo e, então, colocaram som. Estamos em 2020 e a população continua vendo cinema. Olhando em retrospecto, ele sempre existiu e resistiu. Temos uma tendência em dizer que a arte é o reflexo da sociedade. Não, a arte faz parte da sociedade, ela a constitui como qualquer outro setor. Historicamente, a arte brasileira é uma arte questionadora e de resistência”, afirma o jornalista.

Em 2019, o Presidente Jair Bolsonaro ameaçou extinguir a Ancine, atual agência estatal reguladora e fomentadora do cinema brasileiro. Ela foi criada em 2001, no Governo de Fernando Henrique Cardoso.

Os serviços de streaming e o mundo pós-pandemia

Durante a pandemia causada pelo novo coronavírus, a sétima arte encontrou maneiras de conquistar ainda mais o seu público  por meio das plataformas digitais. Márcio, no entanto, pontua que elas “já estavam em alta antes da pandemia”. Para driblar a situação atual, estilos de exibição como o Cinema Drive-In  também têm ganhado força nesse momento.

O professor afirma que o ser humano e o povo brasileiro “foram feitos para a aglomeração” e acredita que, após o confinamento, o público voltará às salas de cinema por um curto período. Mas, ressalta que “talvez, por conta desses meses sem sair, as pessoas passem a preferir assistir cinema em casa”.

Se em 1980, com o surgimento das fitas cassetes, acreditava-se que o cinema estaria em crise, a revolução dos streamings e o pós-pandemia parecem ameaçadores. Para Márcio, “o cinema brasileiro não pode nem deve perder esse bonde. Precisamos produzir cada vez mais para plataformas de streaming e para o mundo”.