Entre o apelo nostálgico e a pressão por inovação, os live-actions revelam o esgotamento de uma estratégia que já não emociona como antes
Nos últimos anos, a Disney tem apostado fortemente em produções live-action. Inicialmente, essa estratégia se mostrou promissora, popular e lucrativa, mas, aos poucos, começou a declinar.
A nostalgia desempenha um papel crucial no apelo inicial desses filmes. No entanto, a resistência do público a mudanças — que prefere manter as histórias intactas em sua forma original — gera desafios. Primeiro, o de manter o engajamento diante da repetição; segundo, o dilema de como inovar sem desagradar um público que interpreta alterações — desde aspectos físicos dos personagens até mudanças no enredo — como afronta ao passado.
Esse fenômeno, no entanto, vai além de gostos e desgostos individuais. Ele nos leva a questionar o monopólio criativo da Disney. Como declarou o jornalista, produtor cultural e audiovisual Adriano Meneses, responsável pelo perfil “Cultura em um Minuto”: “Funcionou nas primeiras vezes, e agora não funciona mais. É uma crise de identidade”.
Tudo isso, para além do estúdio, levanta questões sobre a saúde do cinema contemporâneo, cada vez mais influenciado pelas redes sociais, pela concorrência com os streamings e por uma crise de identidade provocada, principalmente, pela falta de criatividade.
Histórico dos remakes live-action da Disney ao longo do tempo
Os primeiros remakes live-action da Disney começaram na década de 1990, com adaptações de obras mais recentes. O primeiro foi O Livro da Selva (1994), uma espécie de continuação de Mogli – O Menino Lobo (1967). Embora tenha sido um sucesso de bilheteria, o filme foi substituído por uma nova versão em 2016.
101 Dálmatas (1996) representou a primeira grande aposta da Disney no formato e, junto com sua sequência, 102 Dálmatas (2000), ainda é lembrado com carinho.
Após uma pausa nos anos 2000, a Disney retornou em 2010 com o enorme sucesso de Alice no País das Maravilhas, que arrecadou mais de US$ 1 bilhão. Segundo Roberto Elísio dos Santos, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, o filme se tornou um marco graças à direção de Tim Burton, que imprimiu mais de sua autoria do que da própria Disney.
Em 2014, Malévola foi lançado, inspirado em A Bela Adormecida (1959). Apesar de prometer algo diferente, o filme fez sucesso e pavimentou o caminho para Cinderela (2015), que consolidou a fórmula: nostalgia com novas abordagens visuais.
Porém, a partir de 2019, com Dumbo, começaram a surgir sinais de desgaste. Fugindo da fórmula de sucesso, o filme apostou em uma visão mais autoral que não agradou. O Rei Leão (2019), embora lucrativo, foi criticado por seu realismo excessivo, que diluiu o encanto da animação original de 1994. O crítico Márcio Sallem apontou que a Disney já não pensava mais de forma artística, mas financeira.
Com o lançamento do Disney+ em 2019 e a chegada da pandemia, os remakes entraram numa nova fase. A aceleração nos lançamentos levou à saturação e à divisão do público, que passou a enxergar a Disney como uma “fábrica de remakes”, carente de inovação. Elísio observa que a repetição de fórmulas bem-sucedidas é, muitas vezes, fruto da falta de criatividade.
Ainda em 2019, A Dama e o Vagabundo foi lançado no Disney+, com recepção morna, sendo o quarto remake do ano. Já o primeiro grande fracasso veio com Mulan (2020), cercado por polêmicas, como mudanças drásticas no enredo e a exclusão de personagens e músicas originais.
Nesse contexto, Cruella (2021) se destacou por reinventar a história da vilã de 101 Dálmatas. No entanto, produções como Pinóquio (2022), Peter Pan & Wendy (2023) e A Pequena Sereia (2023) foram criticadas por forçar a diversidade, comprometendo a proposta artística.
A Pequena Sereia dividiu opiniões: a escolha de Halle Bailey como Ariel gerou controvérsias, mas também houve críticas à estética hiper-realista e ao fundo do mar escurecido. Apesar do boicote racista, o filme teve desempenho razoável nas bilheteiras, levando a Disney a considerar uma sequência.
Por outro lado, Branca de Neve (2025) enfrentou grandes obstáculos: greves, controvérsias no elenco, mudanças no enredo e uma campanha de marketing confusa resultaram em um fracasso retumbante. A repercussão foi tão negativa que levou ao cancelamento do remake de Enrolados (2010).
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Com o avanço das tecnologias, adaptar clássicos animados para o formato live-action parecia um caminho promissor. Roteiros conhecidos, personagens queridos e efeitos visuais modernos formavam uma receita de sucesso. No entanto, essa fórmula começou a se desgastar à medida que o público passou a enxergar os remakes como repetitivos e previsíveis.
Segundo o jornalista e crítico Gabriel Carneiro, o público inicialmente se sentia confortável ao rever histórias familiares com poucas mudanças visuais e narrativas, mas esse encantamento não dura para sempre: “Em algum momento, isso não funciona mais. Cansa.”
Para Meneses, o fascínio por versões em carne e osso dos personagens está ligado à trajetória inovadora da Disney. Desde os primeiros desenhos em preto e branco até as animações coloridas, a empresa sempre acompanhou os avanços tecnológicos e sociais. No entanto, o excesso de produções semelhantes, que priorizam o lucro em detrimento da criatividade, tem enfraquecido esse diferencial.
Uma das estratégias que trouxe fôlego foi explorar o ponto de vista dos vilões, como em Malévola (2014) e Cruella (2021), que conquistaram o público ao apresentar narrativas alternativas. Contudo, sequências como Malévola: Dona do Mal (2019) acabaram saturando essa abordagem. O professor Elísio destaca: “Era uma inovação. Depois, passou a ser tão corriqueiro que as pessoas desistiram.”
Sallem reforça que o problema não está necessariamente em refilmar os clássicos, mas na forma como isso é feito. Para ele, apostar apenas em grandes orçamentos e efeitos visuais não garante qualidade. “É fazer de uma maneira bem feita […] pegar pequenos detalhes e se perguntar: ‘será que estou caminhando na direção certa?’” Assim como outros especialistas, ele aponta o esgotamento do atual ciclo cinematográfico da Disney, que precisa de uma reinvenção urgente.
Entre a nostalgia e a resistência à mudança
Além da saturação, os live-actions da Disney vêm enfrentando outro desafio: a rejeição provocada por mudanças em prol da diversidade. Embora a nostalgia faça parte da identidade da Disney, ela tem sido usada por alguns grupos como justificativa para críticas infundadas e ataques nas redes sociais.
Segundo Meneses, muitos dos chamados “haters” esperam que os filmes reafirmem apenas aquilo com que se identificam. “Eles gostariam que a obra fosse direcionada ao que se identificam”, comenta. Para ele, esse comportamento reflete resistência à inclusão de grupos historicamente sub-representados, como minorias raciais e de gênero. “Esse hater consome o quê? Ele era fã da Disney? Ele é branco? Negro? Indígena?”, provoca.
Casos como a escolha de Halle Bailey, uma atriz negra, para interpretar Ariel em A Pequena Sereia (2023), e Rachel Zegler, atriz latina, para Branca de Neve (2025), revelam como essas decisões geram reações negativas mesmo antes dos filmes serem lançados. Até rumores sobre uma possível Rapunzel não-branca já provocaram protestos. O professor Roberto Elísio observa que essas críticas são motivadas menos por questões estéticas ou narrativas e mais por um sentimento pessoal de afronta: os espectadores projetam uma infância idealizada nas animações e resistem a qualquer quebra dessa imagem.
Para Sallem, há um subtexto político claro nessas reações: “Tivemos oito décadas de crescimento lento [de representatividade]. Agora, o crescimento é agudo — e precisa ser, porque tem gente que não quer esperar décadas para ter uma chance de se sentir acolhido […] Uma parcela do público enxerga essas mudanças como parte da chamada ‘cultura woke’ ou, entre muitas aspas, ‘lacração’.” Ele ressalta que a inclusão de minorias em papéis centrais não ameaça a cultura clássica, mas sim reflete a sociedade atual, mais diversa.
Carneiro complementa ao apontar a polarização do debate. Para ele, falta nuance: “Tudo é reduzido a ‘ou é bom ou ruim’, ‘ou é fiel ou infiel’, ‘ou é politicamente correto ou não’. Não existe muita perspectiva crítica ou ambiguidade.” Esse cenário binário, somado à nostalgia e ao desgaste da fórmula dos remakes, contribui para a crise de recepção dos live-actions atuais da Disney.
O reflexo cultural e a fragilidade do cinema atual
O streaming transformou profundamente o modo como consumimos filmes. Se, por um lado, ampliou o acesso e a diversidade de conteúdos, por outro, escancarou um problema crescente: a padronização das narrativas e a crise criativa da indústria. Segundo Carneiro, ideias originais enfrentam hoje um “bloqueio de entrada” imposto por algoritmos que priorizam fórmulas seguras e previsíveis.
Elísio reforça que o excesso de oferta obriga o público a filtrar o que realmente vale a pena ver — o que, muitas vezes, favorece o que é mais familiar ou confortável. Nesse cenário, o investimento da Disney em remakes parece contraditório: por mais que os clássicos tenham reconhecimento imediato, falta a eles o frescor necessário para conquistar uma nova geração.
Meneses levanta a questão: é mesmo preciso inovar tanto para recontar uma história já querida pelo público? Já Elísio é mais direto: refilmar sucessos do passado quase nunca rende algo melhor.
Outro fator decisivo é a diferença geracional. Como observa Sallem, Branca de Neve tem valor afetivo para quem cresceu nos anos 80 ou 90, mas talvez diga pouco aos adolescentes de hoje. E, como ele aponta, o excesso de lançamentos acaba normalizando filmes “medíocres” — não no sentido de ruins, mas de esquecíveis, sem impacto duradouro.
Essa crise vai além da Disney. Para Carneiro, o problema atinge toda Hollywood, que ainda não conseguiu competir de verdade com outras mídias. “O cinema, como o conhecíamos, meio que morreu”, afirma. A frase marca um ponto de virada: o fim de um modelo dominante e o início de uma fase em que o cinema precisa, urgentemente, se reinventar.