"Esse prêmio vai para ela": Walter Salles dedica Oscar a Eunice Paiva - Revista Esquinas

“Esse prêmio vai para ela”: Walter Salles dedica Oscar a Eunice Paiva

Por Gabriella Andrade, Alexandre Zerbinato, Mariana Funchal e Gustavo Ávila : março 6, 2025

Longa brasileiro leva Melhor Filme Internacional, mas perde em outras duas categorias. Foto: Divulgação/Ainda Estou Aqui

Brasil leva o prêmio de Melhor Filme Internacional com “Ainda Estou Aqui”, longa que retrata a história da família Paiva

Passados 25 anos da indicação de “Central do Brasil” ao Oscar, o diretor Walter Salles conquistou um feito inédito para o cinema brasileiro. No dia 2 de março de 2025, um domingo de Carnaval, o filme baseado na vida de Eunice Paiva garantiu ao Brasil sua primeira estatueta.

Apesar da conquista histórica, o longa não levou o prêmio de Melhor Filme, e Fernanda Torres não venceu na categoria de Melhor Atriz. Desde a criação da cerimônia, em 1929, a América Latina foi premiada apenas cinco vezes. Em 1999, “Central do Brasil”, dirigido pelo mesmo Salles, perdeu para “A Vida É Bela”, da Itália, enquanto Fernanda Montenegro foi vencida pela estadunidense Gwyneth Paltrow na categoria de Melhor Atriz.

O Legado de Eunice Paiva

Neste ano, os prêmios das outras duas categorias disputadas pelo Brasil foram para “Anora” e para a atriz Mikey Madison, dos Estados Unidos — um resultado que surpreendeu muitos críticos, que apostavam em Demi Moore e Fernanda Torres.

A decisão de Walter Salles de escalar Fernanda Torres e sua mãe, Fernanda Montenegro, para interpretarem Eunice trouxe um simbolismo especial à premiação. Quase três décadas após a indicação de Montenegro ao Oscar, sua filha viveu a mesma experiência, reforçando a continuidade do talento familiar e a força do cinema brasileiro.

“Esse prêmio vai para ela: o nome dela é Eunice Paiva. E também vai para as mulheres extraordinárias que deram vida a ela. Fernanda Torres e Fernanda Montenegro”, disse o cineasta durante o discurso de vitória.

A protagonista do filme, Eunice Paiva, teve um papel histórico que vai além de ser esposa do deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura em 1971. Ela própria foi vítima da repressão e, ao mesmo tempo, uma combatente contra ela. No livro homônimo, Marcelo Rubens Paiva retrata a relação de sua família com o regime a partir do olhar da mãe, que insistia em sorrir mesmo diante das adversidades.

Um Filme Necessário

Com a atual polarização política no país, o longa “Ainda Estou Aqui” vai além da narrativa histórica, provocando reflexão crítica até mesmo em aqueles que resistem a reconhecer os efeitos devastadores deixados por um governo autoritário.

A escolha de retratar a “família tradicional brasileira” foi essencial para a força da obra. Rubens Paiva, um pai de família que não fazia parte da luta armada contra os militares, teve sua vida interrompida pela tortura do Estado autoritário. Sequestrado em sua própria casa, deixou para trás sua esposa e filhos — um elemento que toca profundamente os telespectadores, especialmente os mais conservadores.

A história também revela a transformação de Eunice Paiva, que redescobriu seu papel social após a morte do marido. Sozinha na chefia da família, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva se tornou advogada e defensora dos povos indígenas, mantendo esse compromisso até o fim da vida.

Sete anos após o falecimento de Eunice, que sofria de Alzheimer, o atestado de óbito de Rubens Paiva foi corrigido em 2025, passando a indicar a morte violenta causada pelo Estado.

Paiva

Audiência bate recordes e Globo fatura mais de R$ 20 milhões apenas com cotas publicitárias.
Foto: Instagram/@oficialfernandatorres

Cobertura do Oscar

A Globo realizou uma ampla cobertura do Oscar 2025, com correspondentes internacionais e nacionais, comentaristas da indústria e números de audiência expressivos. A transmissão registrou a maior audiência em 20 anos, atingindo 14 pontos em São Paulo e 15 pontos no Rio de Janeiro.

Para acomodar a cerimônia, a emissora antecipou o horário do Big Brother Brasil para as 19h30, mantendo o Fantástico em seu horário tradicional e garantindo a transmissão ao vivo sem interrupções. A apresentação foi conduzida por Maria Beltrão, com a atriz Dira Paes e o crítico de cinema Waldemar Dalenogare.

Diretamente do Dolby Theater, Sandra Coutinho e Carolina Cimenti cobriram o tapete vermelho, trazendo entrevistas com indicados, incluindo Fernanda Torres, e outras celebridades. A cobertura também se estendeu para festas do Oscar em diversas capitais brasileiras, como São Paulo, Manaus, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde fãs e torcedores vibraram, criando uma atmosfera de Copa do Mundo ou Carnaval, especialmente para celebrar Ainda Estou Aqui e Fernanda Torres.

Além do sucesso de audiência, a Globo arrecadou mais de R$20 milhões com as cotas publicitárias, vendidas para quatro marcas. Essa edição histórica mostrou o verdadeiro lucro da emissora: a decisão de priorizar o Oscar em vez do desfile de carnaval, prestigiando o cinema brasileiro na maior premiação mundial da sétima arte, sem perder o toque nacional.

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Uma Vitória Com Peso Histórico

Após tantas tentativas de representar o país no Oscar, quando a vitória foi anunciada, o Brasil inteiro vibrou por seus artistas, principalmente por seu tema que é parte da história brasileira. Trazer uma premiação tão importante para casa é uma forma simbólica de reparar um passado para a geração que viveu o regime militar, que por muito tempo foi ignorado e acobertado pela política brasileira.

O filme carrega uma grande responsabilidade, por ser uma história sobre resistência em um contexto de fragilidade democrática. Não se resume apenas a mais uma história bibliográfica, é a história de um povo que, apesar da dor de viver em um regime que matou e sumiu com tantas vidas, não se acovardou em sorrir e continuar a lutar por seus direitos. Como disse Eliane Paiva, filha de Eunice, o povo festeja um Oscar, mas não se pode esquecer que, antes de qualquer coisa, a obra é uma denúncia de um assassinato brutal, dentro de um quartel do Exército no Brasil.

Para as gerações que ainda virão, o filme é como uma herança, que por mais complexa que seja de carregar, é extremamente importante, relembrando a ideia de conhecer para nunca mais repetir e reconectar-se com a história de nosso país. Em um momento em que discursos de caráter revisionista, que ameaçam a democracia, são propagados constantemente, a mensagem do filme torna-se mais necessária ainda. Não saber o passado é um risco para o futuro do Brasil.

Repercussão

Na rede social “X”, o antigo Twitter, o público e os famosos celebraram a conquista com memes, fotos, vídeos e textos, como o de Erika Hilton, que escreveu: “Fernanda Torres é ao mesmo tempo o rosto de um Brasil que vibrou pela própria arte de forma nunca vista, e de um país que se reconectou com a própria história”.

O presidente Lula, em suas redes sociais, expressou seu orgulho pelo cinema nacional, destacando especialmente a importância da vitória para a democracia brasileira e a luta contra o autoritarismo.

A Polêmica do Melhor Atriz

Apesar da emocionante vitória do longa trazer alegria e orgulho ao povo brasileiro, Ainda Estou Aqui enfrentou uma desilusão ao perder nas outras duas categorias em que estava indicado: Melhor Filme e Melhor Atriz. Essa dualidade de emoções — a celebração de uma conquista e a tristeza pela ausência de reconhecimento em outras áreas — mexeu com o coração da torcida fervorosa brasileira.

O longa vencedor, Anora, estrelado pela vitoriosa da noite, Mikey Madison, conta a história de uma jovem stripper do Brooklyn que conhece o filho de um oligarca russo em uma boate e os dois engatam em um romance impulsivo.

Após a vitória de Madison, uma das pautas mais discutidas pelos internautas foi a semelhança da realidade com o enredo do longa A Substância — estrelado por Demi Moore — que fala sobre a valorização da juventude e a demonização do envelhecimento. O fato de uma atriz de apenas 25 anos ter ganhado o prêmio contra duas atrizes mais velhas e consagradas foi o suficiente para causar revolta nas redes sociais, especialmente considerando a divergência de temas entre os filmes.

Vale destacar, novamente, que no Oscar de 1999, a atriz brasileira Fernanda Montenegro se viu na mesma situação que sua filha, Fernanda Torres. Ambas foram as únicas brasileiras a serem indicadas ao cobiçado prêmio de Melhor Atriz, mas acabaram perdendo para atrizes norte-americanas mais jovens. Gwyneth Paltrow, com apenas 27 anos, levou a estatueta no lugar de Montenegro, assemelhando-se à situação atual de Fernanda Torres e Mikey Madison.

Porém, ainda é emocionante que mãe e filha tenham sido ambas dirigidas pelo renomado Walter Salles. Em entrevista à Academia, Torres expressou a gratidão de compartilhar a conexão única de ser indicada a um prêmio tão significativo, assim como sua mãe: “É inacreditável, não é? É o mesmo diretor. Devemos muito ao Walter. Isso significa que temos um DNA indicado.”

Mesmo sem vencer em todas as categorias, o Brasil celebrou uma das maiores conquistas do cinema nacional. A emoção da vitória fez com que o país vibrasse em clima de Copa do Mundo — ou melhor, de Carnaval.

Editado por Enzo Cipriano

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