"Minha vida é uma punição": Mickey 17 e os efeitos de um trabalho tóxico - Revista Esquinas

“Minha vida é uma punição”: Mickey 17 e os efeitos de um trabalho tóxico

Por Sarah Fukuyama Ataíde : abril 4, 2025

"Há um espaço muito limitado para que o trabalhador possa ter um crescimento pessoal e psicossocial", afirma psicólogo Foto: Divulgação/Warner Bros.

Novo filme de Bong Joon-ho, conhecido por Parasita (2019), traça um novo olhar para o debate sobre equilíbrio entre vida pessoal e trabalho

O longa-metragem, estrelado por Robert Pattinson, introduz o jovem, inexperiente e endividado Mickey Barnes, que aceita (sem antes ler os documentos de aplicação) uma proposta de trabalho em uma grande companhia corporativa que exige dele apenas uma coisa: passar por situações degradantes e morrer, a fim de servir como experimento para a empresa a qual ele serve. Entretanto, a morte de Mickey não é definitiva, já que o personagem é constantemente reimpresso para mais uma jornada de sobrevivência e morte.

EXPEDIENTE PRECÁRIO NO CAPITALISMO TARDIO

A trama veio em um momento muito oportuno para reintroduzir o diálogo sobre a exploração da mão de obra não qualificada por indústrias na atualidade, já que o estilo de emprego do protagonista implica em longas jornadas de trabalho, refeições racionalizadas e na falta de direitos trabalhistas. Como uma metáfora distópica para o que ocorre na realidade, o jovem Barnes afirma em certo momento da história “odiar morrer”, pois ele passa por isso todos os dias e nunca consegue definitivamente viver, apesar de sempre “ressuscitar”. Em um mundo com tendências de flexibilização dos direitos dos trabalhadores, grande parte da população mundial se encontra na mesma situação: em um eterno modo de sobrevivência.

O Dr. em Psicologia Social e professor no Instituto Sedes Sapientiae, Mario de Souza Costa, caracteriza o que é o trabalho na atualidade, como o apresentado no filme. “O trabalho alienado, do ponto de vista prático, é o longo período do seu dia em que você passa realizando algo que não necessariamente tem a ver com você. É um conteúdo que você, às vezes, sequer sabe o sentido dele.”. Ele complementa dizendo que o desenvolvimento das pessoas que têm essa rotina de trabalho é limitado, pois só acontece na esfera do cargo que elas ocupam. “Nesse sentido, há um espaço muito limitado para que o trabalhador possa, de fato, ter esse processo de crescimento pessoal e psicossocial”.

O filme explicitamente argumenta que as pessoas que passam por esse tipo de abuso estão ali pelo desespero de encontrar uma saída para seus problemas financeiros, explicando o motivo do próprio Mickey não ter se atentado às implicações de seu cargo antes de aceitá-lo. O herói “mais-que-humano” se pergunta diversas vezes o porquê de ter parado em tal situação. “Minha vida deve ser uma punição”, ele conclui. Cidadãos que sofrem desgastes diários em transportes públicos, cargos mal remunerados e, às vezes, duplas jornadas de trabalho, também se sentem indignos de felicidade e satisfação, chegando a pensar que realmente “merecem” os maus-tratos e as privações de saciedade de necessidades básicas que recebem.

O professor também explica que a precarização das relações de trabalho está não apenas nas leis, ou seja, na forma que este indivíduo é contratado, mas também na vida pessoal do trabalhador, já que o efeito de um trabalho informal e de superexploração é a sobrevivência deficiente das pessoas em vulnerabilidade social que são submetidas a essa situação. Ele discorre sobre as consequências desse estilo de “sobrevida” na saúde mental e física dos cidadãos. “O trabalho intenso no capitalismo, tanto na sua carga horária, quanto no conteúdo do trabalho, causa desgaste psíquico e físico no indivíduo. Quando você realiza um trabalho e esse trabalho não é reconhecido pelos demais pares do seu trabalho, isso causa, também, sofrimento mental.”. Pessoas como o Mickey, constantemente, têm o seu trabalho invisibilizado pela sociedade. “Você desenvolver uma psicossomatização está ligada ao significado do que você está fazendo, e você vai criando uma grande ansiedade frente àquilo que parece que você não obtém sucesso”.

EXPERIÊNCIAS UNIVERSAIS DE DESGASTE NO TRABALHO

A publicidade da obra do premiado diretor sul-coreano também foi voltada para focalizar em frases ditas constantemente por pessoas vítimas de burnout e estresse por causa das suas extensas horas laborais. Frases como “Este trabalho é tóxico” e “Este trabalho te devora” estão presentes nos posters do longa e não são apenas características da posição do Mickey em sua empresa, mas também de pessoas financeiramente vulneráveis no mundo inteiro. Jovens estagiários e pessoas que estão insatisfeitas com seus empregos começaram a usar algumas situações vividas por Mickey no filme para criar memes com suas próprias experiências no mercado de trabalho.

Lídia Carnevali, psicóloga e pós-graduada em Gestão de Pessoas pela USP, coloca os memes como fatores importantes para o alívio do estresse, além de serem formas de expressão eficazes em criar um senso de pertencimento e fomentar análises mais críticas das situações vividas no ambiente de trabalho. “Você sair desse lugar de que as coisas só acontecem com você, além de entender como a sociedade funciona, traz um certo alívio no sentido de que eu posso questionar, criticar e ver como outras pessoas pensam sobre esse assunto”.

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CINEMA COMO CRIADOR DE NOVOS DIÁLOGOS

Por fim, o protagonista chega à conclusão de que merece felicidade, satisfação pessoal e relacionamentos saudáveis assim como todas as outras pessoas, e que as condições insalubres da sua rotina não são culpa sua. Todavia, em um contexto em que a uberização das relações trabalhistas e os índices de doenças mentais aumentam exponencialmente, como melhorar as condições de trabalho dos cidadãos contemporâneos?

A psicóloga, que também é Head de Pessoas e Cultura na empresa Yampi, discursa sobre a efetividade do cinema em agir não apenas como um tipo de entretenimento, mas como uma das maneiras mais acessíveis de introduzir questionamentos capazes de incentivar ações em busca de melhorias sociais. “A arte, no geral, é um entretenimento muito necessário para mantermos a sanidade”. Ela também comenta sobre como o fato de os filmes serem consumidos, atualmente, na forma de descanso e descontração é crucial para unir o cuidado da saúde mental e do lazer, com o levantamento de questões sobre o mundo em que vivemos.

Obras como Mickey 17 (2025) são essenciais para colocar questionamentos sobre a relação do ser humano com o trabalho no epicentro dos debates sociais e criar desconforto nos consumidores de cinema, a fim de desnaturalizar situações abusivas que são consideradas naturais por sua grande ocorrência. O novo projeto do vencedor do Oscar de Melhor Filme por Parasita, em 2019, é um ótimo início para reacender a conscientização social sobre a relação da sociedade moderna com o seu modelo de trabalho e fazê-la por meio da arte e da cultura: direito de todos independentemente das suas condições financeiras.

Editado por Luca Uras

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