Apesar da ausência de produções brasileiras concorrendo ao prêmio principal de Cannes nesse ano, o país marcou o evento em várias ocasiões
O festival de cinema de Cannes é considerado o maior evento cinematográfico da temporada, trazendo visibilidade para diversas produções de todos os cantos do mundo. Em 2023, a premiação se encerra em 27 de maio, sábado, e terá exibido até então 50 filmes, entre os quais 21 concorrem ao principal prêmio do evento: a Palma de Ouro.
O cinema nacional sempre marcou presença em Cannes, ainda que de maneira discreta aos olhos do grande público. Em 76 edições do festival, apenas um filme brasileiro venceu a Palma de Ouro: O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, em 1962. O longa conta a jornada de Zé do Burro, que faz uma promessa de carregar nas costas uma imensa cruz de madeira até a Igreja de Santa Bárbara, após o seu asno de estimação ser atingido por um raio. Ele também foi indicado ao Oscar de melhor filme internacional, mas não levou o prêmio.
Após 61 anos da primeira, e única vitória brasileira na categoria, as produções nacionais acumulam 38 indicações, porém, nos últimos três anos, elas estiveram ausentes da competição pelo prêmio principal.
“Nos últimos três anos, o mundo estava em uma pandemia que prejudicou de modo inédito o cenário cultural em todo o mundo. No caso brasileiro específico, esse período foi marcado por um governo, cuja gestão foi de total desdém aos agentes e às instituições culturais. Isso resultou nas interrupções de incentivos culturais e de apoio a projetos de valorização da arte”, afirma a historiadora Vanessa Bortulucce, 48 anos. Ela acrescenta que em um festival como Cannes, há de se considerar que o Brasil, que possui momentos marcantes no evento, ainda tem de lutar por um espaço em uma agenda cultural fortemente voltada para o cinema europeu e o norte-americano.
Protagonismo nordestino
A história do Brasil em Cannes possui momentos marcantes, sobretudo, em relação às produções nordestinas. O primeiro filme a ser indicado ao prêmio da Palma de Ouro, “Sertão”, em 1949, o único vencedor, “O Pagador de Promessas”, entre outros, são do Nordeste brasileiro, a região nacional, que detém o segundo maior número de longas prestigiados no festival de cinema.
Entre os destaques, estão a adaptação de “Vidas Secas”, homônimo livro de Graciliano Ramos; a produção franco-brasileira “Aquarius’, estrelada por Sônia Braga e gravada em vários pontos de Recife; e “Bacurau”, uma segunda parceria da dupla composta pelo escritor brasileiro Kleber Mendonça e pela produtora francesa Emillie Lesclaux.
O último longa, “Bacurau”, foi, até agora, o mais recente vencedor brasileiro em Cannes, faturando o prêmio do Júri, em 2019. O enredo aborda a perspectiva de um futuro próximo em uma pequena cidade de Pernambuco, Bacurau. Os habitantes desse local percebem algo estranho acontecer na região, enquanto drones passeiam pelos céus, estrangeiros chegam pela primeira vez na cidade com planos de exterminar toda a população ali residente. A cidade está sendo atacada e todos devem se preparar para enfrentar o inimigo.
Já a produção “O Cangaceiro”, de Lima Barreto – diretor e roteirista paulista – venceu o já extinto prêmio de melhor filme de aventura, em 1953. A trama acompanha o bando de cangaceiros de Capitão Gaudino, que semeia terror pela caatinga nordestina. É nesse contexto que a professora Maria Clódia, raptada durante um assalto do grupo, se apaixona pelo pacífico Teodoro, gerando um conflito no bando.
“Acredito que o destaque nordestino em Cannes seja pela diversidade cultural. Aqui, ainda que de forma menos valorizada pelo nosso próprio país, já que as regiões Sudeste e Sul possuem mais recursos e investimentos, existe o cinema de arte muito enraizado, voltado para memória, para a nossa realidade e imprime melhor a cultura do Brasil. Valoriza o que nos torna únicos”, afirma Laís Monteiro, estudante de cinema da Universidade Federal da Bahia.
Ainda que a região Nordeste seja destaque em Cannes, o eixo Rio-São Paulo concentra a maior parte das produções cinematográficas nacionais. Prestigiado no festival por filmes como “Eu Sei que vou te amar” e “Linha de Passe”, que renderam prêmios de melhor atriz para Fernanda Torres e Sandra Corveloni, respectivamente. O longa “Carandiru”, baseado no livro do médico Drauzio Varella, em que ele narra suas experiências com a dura realidade dos presídios brasileiros em um trabalho de prevenção à AIDS, realizado na Casa de Detenção de São Paulo, também foi muito elogiado no festival de 2003.
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Na 76° edição do Festival de Cannes, o Brasil teve até o momento uma participação discreta na premiação principal, mas não deixou de estar presente. O diretor cearense, Karim Aïnouz, é responsável pela direção da produção britânica Firebrand, que concorre a Palma de Ouro.
O longa-metragem “Crowrã– A Flor do Buruti”, que documenta a vida do povo krahô no Tocantins, ganhou destaque durante as mostras paralelas do festival. A equipe do longa exibiu um enorme cartaz, na quarta-feira (24/5), apoiando a causa da demarcação de terras indígenas no Brasil. A frase dizia em inglês: “O futuro das terras indígenas no Brasil está ameaçado” e acrescido em português estava: “Não ao Marco Temporal”. Hoje (26), o longa conquistou o prêmio Un Certain Regard.
Ainda é incerto o que as premiações futuras podem reservar ao cinema brasileiro, mas até o momento, ele já possui uma história marcante em Cannes.
“Acho que o Brasil é muito rico e precisa mostrar para o mundo nossa realidade, nossa forma de pensar, histórias com a nossa cara. Mas para isso acontecer, é um caminho longo, não é impossível, mas nenhum filme funciona sem incentivo fiscal, sem que haja um mobilização, patrocinadores que viabilizem esse processo, o cineasta não pode bancar tudo do próprio bolso. Então se você não cria meios, fica difícil você ter produções representando o país lá fora.” – reafirma Laís Monteiro.
Espera-se que em 2024, os filmes nacionais sejam protagonistas em Cannes e assim, representem toda a nação.