No mês dedicado ao combate à violência sexual infantil, um filme documental é responsável por promover debates e dar luz ao tema
Uma produção que fala de dor, mas também de coragem, cura e empatia. Assim é o documentário “Apesar de,” dirigido por Beatriz Prates, que acompanha a trajetória de Georgia Bergamim, uma mulher que decide romper o silêncio e expor a violência sexual que sofreu dos oito aos onze anos de idade.
Com depoimentos sinceros e uma abordagem sensível, a produção se destaca por tratar de um dos temas mais urgentes e silenciados da sociedade brasileira: o abuso sexual infantil.
Sem recorrer a imagens chocantes, o filme aposta na força das palavras e do silêncio. Ao longo da produção, Georgia narra algumas de suas experiências: na infância, contando da dificuldade de confiar nas pessoas e no sistema que tanto falharam com ela, sobre os anos calada por medo das ameaças e o impacto emocional gerado em sua vida.
Relata também o processo de enfrentamento, conta do impacto da arte em sua vida, que se fez tão presente no processo de ressignificar sua relação com o próprio corpo, fala da busca por apoio e da decisão de transformar a dor em voz ativa.
“Decidi contar minha história porque acredito na força que quebrar o silêncio tem. É importante falar sobre isso porque as pessoas acham que esse é um tema muito distante delas, e que é algo que não vai afetar o seu cotidiano. Mas enquanto continuarmos nesse silêncio, deixando esse assunto nas sombras, ele vai crescendo e quem vai pagar por essa falta de diálogo, são as crianças”, afirma Georgia.
Para a diretora do documentário, Beatriz Prates, a história tem um alcance universal: “É uma história que toca a todos, independentemente de onde estejam. Em todos os lugares que eu vou, as pessoas entendem o que aconteceu, se emocionam juntos nos mesmos momentos e se sentem impactadas com a potência dessa história”. A relevância do tema e a sensibilidade da abordagem já renderam ao documentário seleções em festivais internacionais na Espanha, Turquia e EUA.
Produzido pelas produtoras Butterfly e Cabide Filmes, com patrocínio do Instituto Beja e do escritório Daniel Law, Apesar de, tem apoio institucional da organização Childhood Brasil. O filme está disponível em plataformas como Apple TV, Amazon Prime Video, Claro TV, Vivo Play, Google Play, Microsoft e TLC Channel, e estreou em 16 de maio na TV SESC Digital.
A realidade por trás da arte
O impacto do documentário vai além da história de Georgia. Ele joga luz sobre dados preocupantes: segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada hora pelo menos quatro meninas com menos de 13 anos são vítimas de violência sexual no Brasil. A maioria dos casos acontece dentro de casa e é cometida por pessoas próximas, o que torna a prevenção ainda mais desafiadora.
De acordo com Luciana Temer, advogada e presidente do Instituto Liberta, a violência sexual possui camadas: uma esta ligada com a o compartilhamento dos dados de violência, onde é possível notar uma boa abordagem, e outra que é mais profunda e pouco comentada, ligada ao entendimento de como essa violência se dá.
Para a advogada, o trabalho feito no documentário é essencial e trata essa questão com o cuidado necessário. “Quando apresentamos os dados as pessoas ficam chocadas e o primeiro pensamento que elas tem é relacionado à como punir o criminoso, muitos não conseguem compreender a parte mais cruel dessa violência, que é como ela acontece”, explica Temer.
“Na maioria dos casos ela surge a partir de uma relação familiar, ligada por afetos. O silêncio sobre essa violência não é injustificado. Quando eu pergunto para as pessoas ‘se a sua filha fosse abusada, você denunciaria?’ todos respondem ‘sim, claro’, mas e se o abusador for o seu pai? ou o seu filho mais velho? temos que pensar nesse assunto pois essa é a realidade em que a violência sexual infantil se encontra”, complementa.
A exibição do documentário pelo Brasil está acontecendo em um período importante para o tema abordado: Maio Laranja, mês de conscientização e combate ao abuso e à exploração sexual de crianças e adolescentes. A campanha nacional busca promover ações que estimulem o diálogo, fortaleçam os laços de confiança e ensinem adultos a identificar sinais de abuso.
Durante o mês de maio diversas ações estão sendo realizadas em todo o Brasil para fortalecer o combate à violência sexual contra crianças e adolescentes. A mobilização envolve campanhas educativas em escolas e comunidades, e o incentivo a capacitação de profissionais da rede de proteção. Ocorre, também, o incentivo à denúncia por meio de canais como o Disque 100, destacando que o enfrentamento desse tipo de crime depende do engajamento coletivo, da escuta ativa e da criação de espaços seguros para crianças e adolescentes.
É importante ressaltar que essas iniciativas não devem ficar restritas ao período do mês de maio e devem ser discutidas ao longo do ano todo. “Não são apenas números, cada um representa uma Georgia”. Por trás das estatísticas existem histórias reais de dor, que só podem ser identificadas e combatidas por meio da atenção para com as crianças e adolescentes.
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A importância da exibição para ampliar o alcance da causa
No dia 14 de maio, o documentário “Apesar de,” foi exibido no Espaço Mulheres do Brasil. A sessão foi considerada “de impacto”, e teve como objetivo levar a produção a espaços de debate, acolhimento e transformação.
“Foi muito especial realizar nossa primeira sessão de impacto junto de mulheres que têm a potência de levar a mensagem do documentário adiante. Quanto mais falarmos sobre o tema, maior a chance de prevenção deste crime”, afirma a diretora Beatriz Prates.
O evento reuniu mulheres de diferentes áreas e vivências. Durante a exibição, o silêncio comovido do público foi seguido por um momento de debate, onde as participantes compartilharam suas próprias experiências e refletiram sobre a obra. O espaço foi preparado para acolher essas histórias, criando um ambiente seguro e respeitoso.
A recepção calorosa e o impacto emocional do encontro reforçam a ideia de que essa produção tem um potencial para ser um instrumento que gera conversas. “Estamos trabalhando nesse processo de levar as exibições para diversos lugares”, conta a diretora. “É importante amplificar esse contato nas escolas, nos hospitais e em espaços como esse, pois o contato após a exibição é muito interessante para ampliar o debate e poderoso na conscientização.” complementa.
“Apesar de,” vai além do cinema. É um convite à escuta, à empatia e à ação. Em um país onde tantas crianças ainda sofrem caladas, iniciativas como esta têm o poder de romper o silêncio, provocar reflexão e inspirar mudanças reais.