Especialistas explicam causas da utilização de expressões linguísticas no nosso cotidiano e como elas perpetuam preconceitos
“A língua não está dissociada da cultura. Seja qual for o traço linguístico, ele está intimamente associado à cultura e às formas de pensar”, explica a professora de língua portuguesa Ana Catarina Melo, 52 anos, formada em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
A linguista utiliza a teoria de Mikhail Bakhtin, filósofo russo, para retratar um fenômeno que observa na sociedade atual: termos e expressões que refletem estigmas e intolerância. “De acordo com Bakhtin, existem duas forças que regem a língua: as centrífugas e as centrípetas. A primeira é representada pelas forças naturais, que fazem com que a língua mude o tempo inteiro. Já a segunda, é identificada naquelas forças de reação à mudança na língua e diversos fatores corroboram para isso como, por exemplo, os preconceitos”, afirma.
Por conta disso, a partir do momento em que a linguagem reflete uma sociedade, os preconceitos dela também aparecem diluídos na língua. Para a historiadora Adriana Freitas, 47 anos, formada pela Universidade de São Paulo (USP), a violência simbólica que aparece em diversos vocábulos é consequência de eventos históricos.
“São coisas que são postas em uma normatização linguística, mas que refletem muita coisa do nosso passado. Um passado escravista, colonial, patriarcal e que reproduzimos sem ao menos refletir. Muitas das expressões ainda são usadas sem que as pessoas tenham essa noção, mas, às vezes, é um desserviço continuar usando”, destaca ela.
Os termos que refletem os preconceitos
“Retardado”, “débil mental” e “demência”. Esses são só alguns dos termos utilizados na linguagem cotidiana que refletem o capacitismo. Outros tipos de discriminação, no entanto, aparecem em muitas outras expressões, como “judiação”, carregada de antissemitismo, e “olho gordo”, que contém uma conotação gordofóbica.
Dentre os termos que refletem os preconceitos, contudo, o racismo é uma das formas de intolerância velada mais recorrente. A historiadora Adriana Freitas explica que isso ocorre em função de raízes históricas que estruturam a sociedade brasileira. A escravidão, que durou mais de 300 anos, deixou marcas que permaneceram presentes mesmo após a abolição.
Isso aparece, por exemplo, em termos linguísticos que associam o preto a algo negativo ou que carregam um vestígio da escravidão:
“Denegrir”, “ovelha negra”, “lista negra”, “mulata”, “criado mudo”, “situação preta”, “mercado negro”, “inveja branca”, “segurar vela” e muitos outros.
Para a professora de português Ana Catarina, ao utilizar essas expressões que carregam preconceitos velados, não estamos ferindo fisicamente pessoas, mas estamos causando dor ao fazer uso de um discurso violento.
“Existe uma falácia no discurso de que ‘não estou matando ninguém’, como se você só produzisse dor e sofrimento a alguém se você o matasse. A gente tende a colocar aquilo que é físico e concreto como superior àquilo que é emocional, subjetivo”, diz. “Ao dizer ‘denegrir’, por exemplo, não estou matando ninguém, mas estou matando a afetividade de alguém que representa uma história, então eu estou matando alguém subjetivamente. Não é de forma física, é de forma emocional, mas é tão grave quanto”.
Para Adriana Freitas, uma mulher negra, cada uma dessas palavras constrói um sentido diferente: “Quando se começa a falar ‘eu sou preto’, ‘eu sou preta’, é uma marca, é uma resistência, é um movimento de uma política afirmativa. Negro está mais relacionado a essa tentativa de homogeneização, como ao falar cultura negra, quando, na verdade, são culturas negras”.
Veja mais em ESQUINAS
“Quanto mais escuro, menos aceitação”: O que é colorismo e como ele afeta a vida de pessoas negras
No dia do fotojornalista, profissionais pretos comentam contraste racial
Como mudar isso?
As especialistas apontam a necessidade da conscientização para evitar a perpetuação dos preconceitos nessas expressões. Adriana ressalta que a discriminação vai muito além dos termos, mas que continuar utilizando-os contribui para manter a sociedade como está. Para Ana Catarina, mais do que substituir, é necessário estudar o que está por trás da linguagem e de sua formação para, assim, ter conhecimento e compreender as origens dos termos utilizados no cotidiano.
“Se uma sociedade é preconceituosa, isso vai para a língua, inevitavelmente. O que não é natural é que não se combata. A conscientização deve sempre existir. Mas, infelizmente, não acho que seja uma mudança que ocorra de uma hora para outra”, afirma a professora.