Movimento luta para humanizar paulistanos postos às margens do capitalismo - Revista Esquinas

Movimento luta para humanizar paulistanos postos às margens do capitalismo

Por Beatriz Rocha, Felipe Erlich, Maria Clara Matos e Silvio Júnior : julho 10, 2023

Padre Júlio Lancellotti ao lado de estruturas hostis à presença da população de rua, em São Paulo/Foto: Henrique de Campos

Tratamento hostil à população de rua vai de violência policial à arquitetura proibitiva, impedindo o direito à cidade e uma vida digna

Aporofobia — um termo desconhecido por muitos, mas reflexo de uma sociedade autoritária, marcada por violências cotidianas principalmente contra a população de rua. Cunhado pela filósofa espanhola Adela Cortina, o neologismo representa a rejeição e aversão aos pobres, sendo escolhido como palavra do ano pela Fundación del Español Urgente (Fundéu) em 2017. 

O nome pouco conhecido ganhou destaque no noticiário nacional quando Júlio Lancellotti, clérigo católico que comanda a paróquia de São Miguel Arcanjo no bairro paulistano da Mooca, denunciou publicamente por meio das redes sociais que pessoas em situação de rua estavam sendo silenciosamente afastadas de locais públicos. Em fevereiro de 2021, o padre quebrou com marretadas estruturas de concreto postas pela prefeitura de São Paulo sob os viadutos Dom Luciano Mendes de Almeida e Antônio de Paiva Monteiro, na Zona Leste, onde pessoas sem uma residência fixa costumam habitar. A atitude ganhou repercussão internacional e chamou a atenção de veículos de renome como o britânico The Guardian, trazendo à tona um problema estrutural do Brasil: a aversão aos pobres. 

Em Mito Fundador e Sociedade Autoritária (2000), a intelectual brasileira Marilena Chauí descreve como as relações de poder hierárquicas enraizadas despertam uma certa sedução inconsciente pela autoridade. Uma violência silenciosa e normalizada também faz com que os paralelepípedos postos debaixo dos viadutos e em bancos de praças sejam quase que aceitos por uma população acostumada a ignorar as camadas esquecidas de uma cidade. O Estado, dessa vez representado pela antiga gestão do ex-prefeito de São Paulo Bruno Covas, reproduz as relações de poder de uma vida social marcada pelo domínio do espaço público e sobre quem tem acesso a ele. A arquitetura urbana se torna então antagonista aos seus próprios transeuntes e habitantes.

Para além da arquitetura hostil, a repressão policial é outra marca de uma sociedade autoritária que invisibiliza os mais pobres. Paulo Escobar, que atua na Paróquia São Miguel Arcanjo, do padre Júlio Lancellotti, comenta como a violência está fortemente presente na realidade de pessoas que não são vistas como seres humanos pelo Estado. “Quem mais violenta a população de rua é a Guarda Civil Metropolitana (GCM). Em um estudo recente do Observatório de Aporofobia, os moradores disseram por onde sentem maior preconceito: em primeiro lugar, pelo olhar das pessoas e, em segundo, pela cassetada da GCM”.

O Observatório, como movimento social de combate à aporofobia, procura realizar estudos, pesquisas e denúncias sobre o tema. No Instagram da página, não faltam notícias e imagens de moradores de rua sofrendo agressões por parte de policiais e tendo seus pertences retirados de forma autoritária. Um dos casos ganhou destaque nas últimas semanas, após o padre Júlio Lancellotti compartilhar em redes sociais um vídeo de uma pessoa em situação de rua sendo levada com os pés amarrados junto às mãos por policiais militares. O homem, preso sob acusação de roubo em um supermercado, colaborou com os agentes de segurança, mas não escapou de uma abordagem truculenta. Agora a Secretaria de Segurança Pública (SSP) apura as circunstâncias relativas às ações dos profissionais envolvidos no episódio. 

Paulo Escobar, que contribui para o trabalho do Observatório, sinaliza os próximos passos do projeto para a garantia de melhores condições de vida à população de rua. “Temos trabalhado nas questões de denúncias, além da produção de materiais, como artigos, textos e pesquisas voltados para o problema da aporofobia. O site, uma espécie de depósito de artigos e entrevistas, vai estar disponível a partir do próximo mês. Também temos alguns materiais sendo produzidos com a Universidade de São Paulo (USP), a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e a Companhia das Letrinhas, que vai lançar um livro infanto-juvenil sobre o tema”.

população de rua

São Paulo (SP), 12/05/2023 – O padre Júlio Lancellotti participa de manifestação em prol da vida e dignidade da população de rua e lançamento da carta-manifesto contra ações higienistas na cidade, em frente à prefeitura.
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A aparente iniciativa da máquina estatal de anular a tentativa de ocupação dos espaços que, teoricamente sendo públicos são destinados ao povo, também chamou a atenção dos parlamentares. Em 21 de dezembro de 2022 foi promulgada a lei nº 14.489, nomeada de Lei Padre Júlio Lancellotti, após a derrubada de um veto do ex-presidente da República Jair Bolsonaro. A norma, que prevê a proibição de equipamentos, estruturas, materiais e outros elementos que busquem afastar pessoas de espaços públicos, teve origem no Projeto de Lei (PL) 488/2021, do senador Fabiano Contarato (PT-ES).

Entre suas diretrizes, a proposta pretende garantir a “promoção de conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado”, impedindo o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população por qualquer técnica construtiva hostil. 

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Na manhã de uma terça-feira deste mês de junho, o sociólogo Paulo Escobar prestava auxílio a pessoas sem-teto ao lado do padre Júlio quando foi abordado pela reportagem. O paulistano contou sobre seus mais de vinte anos de militância junto ao movimento social, nove deles na região da Cracolândia, e ofereceu impressões a respeito da luta de classes brasileira. “São Paulo é muito pobrefóbica. Todo o juízo que a população faz do morador de rua é moral, porque a vida dessas pessoas é pública, não privada. A gente tem uma vida dentro de quatro paredes, fazemos coisas que muitos deles fazem também, mas o juízo todo sobre eles é moral”, relata.

“Se houver uma mudança estrutural sistêmica, é lógico que a gente vai ficar feliz. A gente luta por essa utopia”, Paulo Escobar.

O militante descreve a simples humanização do povo de rua como o maior desafio do movimento do qual faz parte. A partir do momento em que o marginalizado se torna gente ao olhar alheio, a mobilização para ajudá-lo viria, segundo ele. Nesse sentido, Paulo frisa que o ideal meritocrático, que coloca o pobre como merecedor de sua condição e o desumaniza, consiste na principal barreira ideológica ao progresso.

Por mais que o termo seja um tanto quanto recente, a aporofobia caminha com a história do Brasil desde a invasão portuguesa de 1500. A ojeriza àqueles que vivem às margens do capitalismo, culminando em segregações das mais variadas naturezas, é um pilar da construção do país que conta com a Pastoral do Povo de Rua, do padre Júlio. Questionado se houve algum progresso para a conscientização de classe nos últimos 500 anos, Paulo afirma que certos momentos foram melhores que outros, mas que o autoritarismo classista é inerente à realidade nacional, independente do recorte no tempo. “A gente fala dos mortos e desaparecidos da ditadura militar, mas tem os mortos e desaparecidos da democracia. As torturas continuam rolando nas favelas e periferias”, diz.

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Paulo Escobar na paróquia São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca- Zona Leste de São Paulo.
Foto: Felipe Erlich

A partir da luta pelos sem-teto pautada pelo prisma da Teologia da Libertação, membros da Pastoral do Povo de Rua vislumbram mudanças sistêmicas na realidade brasileira. No entanto, Paulo denota certo demérito das forças majoritárias no campo da esquerda latino-americana ao olharem apenas o todo, negligenciando pequenas batalhas. “É preciso olhar mais para os zapatistas mexicanos. Um movimento organizado junto da população indígena que fala que a mudança tem que acontecer em microrrevoluções também. Então assegurar a vida de um morador de rua também é parte de um processo revolucionário”, diz.

Editado por Mariana Ribeiro

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