Milhares de famílias brasileiras estão dispostas a adotar crianças na primeira infância, mas quando se trata de crianças maiores e adolescentes, apenas 2% aceitam a adoção tardia
No ano de 2023, aproximadamente 35 mil famílias estavam dispostas a adotar uma criança. No mesmo ano, pouco mais de 4.400 crianças estavam à espera de uma família. Em uma conta básica, é possível perceber que existem, mais ou menos, oito famílias disponíveis para cada criança na espera de ser adotada.
De acordo com a Radioagência, no Brasil atualmente tramitam mais de 5.000 processos de adoção. Entre eles, 300 envolvem grupos de irmãos, 73 adolescentes com mais de 16 anos e 15% são de crianças negras. No Rio de Janeiro, em 2022, o Conselho Nacional de Justiça apontou que, das 222 crianças esperando adoção, 150 tinham mais de oito anos, mais da metade tinham irmãos e aproximadamente 85% delas eram pretas ou pardas. Já no Nordeste, das 822 crianças, quase 80% eram maiores de seis anos.
Como podem ter tantas famílias esperando por um filho e ainda existirem crianças na fila aguardando por um lar? Acontece que, dessas 35 mil famílias, apenas 2% aceitam realizar a “adoção tardia”, termo que denomina a adoção de crianças mais velhas e adolescentes. Mesmo que tenha apresentado um aumento em 2023, essa adoção tardia ainda precisa de muito investimento de famílias adotantes.
Lesle Santos, de 35 anos, adotante de adolescentes de 12 e 14 anos, faz parte da diferença que luta pelo aumento estatístico na adoção tardia. No início, Santos comenta que ele e a esposa pensavam em adotar crianças de até cinco anos de idade, mas a decisão mudou após Lesle passar a frequentar um projeto voluntário com adolescentes.
Ele afirma que a adoção tardia tem sim os seus desafios, como escola, rotina, regras e construção de afeto, mas que fica surpreso em como essa experiência traz novidades ao longo do caminho, e que a sua relação com seus dois filhos “é muito boa”.
Por que adotar?
Muitos adotantes recorrem à adoção por impossibilidade de gestar ou pela simples preferência de acolher uma criança ou adolescente do centro de adoção. Lorane Andrade, publicitária de 31 anos, afirma que, mesmo antes de querer se casar com o marido Fábio, sabia que seria mãe através da adoção, recebendo o apoio do parceiro que não se importava com a via da paternidade. No dia que decidiram iniciar o processo, ao estudarem sobre a carência da adoção tardia no sistema, resolveram mudar o curso da escolha. “Sempre nos perguntamos se queríamos ser pais, ou se queríamos um bebê. E nossa resposta sempre foi: queremos ser pais.”
Hoje, o casal é lar de duas crianças adotadas tardiamente: Edu, adotado aos 11, que hoje tem 14 anos, e a ‘princesa’ Moni, como é chamada carinhosamente pela mãe, adotada recentemente aos 11 anos.
Existem, também, aqueles que acreditam que os pais recorrem ao processo por um “ato de caridade”. Wagner Pontes Araújo, 33, não encara a adoção dessa maneira. “Não nos motivamos a ajudar alguém. Fizemos isso justamente porque queríamos”, conta Pontes. O publicitário e adotante de três irmãos de 12, 9 e 6 anos deixa claro que a decisão, algo que já considerava há 8 anos, partiu do sentimento de incompletude na formação de sua família com seu esposo.
Já Lesle viu a adoção como uma alternativa após sua esposa passar pela remoção de um ovário e das trompas devido a um teratoma. “Uma alternativa seria a inseminação artificial, mas por ser algo incerto, custoso e doloroso, desconsideramos essa possibilidade”, relembra ele. “Por isso, escolhemos o caminho da adoção, já que amor temos de sobra.”
Antes de adotar, o preparo
É ideal para interessados em adotar que se dirijam à Vara da Infância e da Juventude de seu município, e caso não encontre, procurar a Vara da Infância mais próxima. Junto à iniciativa de encontrar o fórum, muitos lugares incentivam participar de cursos para melhor preparação da integração dos adotados. “Recebemos todas as orientações que eram necessárias para adotar, tanto com o pessoal do fórum como com as pessoas da instituição que realiza o curso”, conta Wagner.
Por não saber muito sobre adoção e sentir a necessidade de estar melhor preparado, Lesle decidiu recorrer a um grupo de apoio. “Nos inscrevemos em um curso preparatório em um grupo de apoio chamado Grupo GAIA, hoje chamado Abraço de Família. E fizemos o curso por aproximadamente 12 meses.”
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“Posso chamar vocês de pai e mãe?”
Há quem afirme que a adoção na adolescência é muito mais desafiadora no quesito da adaptação da criança e dos pais. Para Lorane Andrade não é bem assim. A publicitária conta que seus filhos carregam uma história, dores e traumas de sua vida antes de serem adotados mas que, com amor e respeito, essas feridas podem ser curadas.
“Não consigo esquecer o dia que ele perguntou: posso chamar vocês de pai e mãe? Foi no nosso primeiro passeio fora do abrigo. Ele era de uma cidade muito longe da nossa, 6 horas de carro. Decidimos nesse dia não voltar para nossa cidade sem ele. Edu abriu meu coração para a maternidade, não me arrependo nenhum dia de ter escolhido esse perfil, mesmo havendo desafios, normal de cada idade”, conta Lorane.
Até hoje, muitas pessoas perguntam a ela por que o casal não adotou um bebê, já que seria mais fácil de “moldar”. “O que te garante que filhos gerados biologicamente não vão te dar trabalho? Vão ser exatamente o que você quer que eles sejam só porque você os cria desde bebê?”, responde a publicitária.
Já Wagner, afirma que a adaptação das três crianças durante os primeiros dois meses foi bem intensa. Havia muita mudança de rotina e vários quesitos a melhorar na convivência familiar, mas que sua rede de apoio foi fundamental para a fluidez da adequação. “Foi difícil perder um pouco da nossa liberdade, entender que agora nossa prioridade não era mais só o casal, mas sim as crianças. Não só eles estavam aprendendo a ser filhos, mas nós também estávamos aprendendo a ser pais.”
No final das contas, um ano após o início dessa adaptação, Wagner afirma que a relação com seus filhos é muito natural. As questões que as crianças enfrentam hoje são problemas da idade, e não do seu passado. Ele também fica tranquilo em dizer que percebe uma evolução diária em seus filhos, tanto com os pais, quanto na escola e com os amigos.
O estigma da adoção
Um estigma comum às famílias que tenham passado por uma adoção é o preconceito. Apesar dos avanços legais e sociais na promoção da adoção como uma forma legítima de construir uma família, há quem ainda enfrenta atitudes discriminatórias e desinformadas por parte de outros. “As pessoas sempre tem uma opinião para dar sobre a vida, a escolha do outro”, afirma Lorane. Para ela, o preconceito se explica por si só: são pessoas que querem falar sobre algo que elas não conhecem.
“Adolescentes não chegam em um abrigo porque querem. São tão dignos de amor, carinho e família quanto bebês e crianças menores. São capazes de amar e se refazer”, a publicitária conclui.
O preconceito em torno da adoção pode se manifestar de várias maneiras. Alguns indivíduos questionam a legitimidade dos laços familiares entre pais adotivos e seus filhos, insinuando que essas relações são menos válidas do que aquelas baseadas em laços biológicos. O ato ganhou o Projeto de Lei (1333/2020), que ainda está em desenvolvimento, criminalizando o ato de discriminar a criança ou adolescente em razão de sua filiação civil.
Outros expressam preocupações infundadas sobre o comportamento futuro das crianças adotadas, sugerindo que elas podem ter “problemas” devido à sua origem adotiva, como exemplifica Wagner Araújo:
“Com relação à idade, sempre o que foi mencionado, inclusive por muitas pessoas próximas, é que o maior problema poderia ser com o irmão mais velho (que hoje tem 13). Mas no fim das contas, dos três, ele é o mais carinhoso, o mais presente, e tem menos questões comportamentais a serem trabalhadas do que seus irmãos (apesar de ter sido o que mais sofreu junto aos genitores).”
Além do preconceito em razão da adoção, ele ainda complementa que seus filhos estão suscetíveis a sofrerem preconceito racial, religioso e de orientação sexual, por não serem brancos e terem sido adotados por homens gays e umbandistas. “Tudo coloca eles numa posição à margem”, comenta o publicitário. “O que temos dado é a estrutura para que eles se coloquem nessa posição de vencedores, e não de vítimas da sociedade.”
As crianças adotadas também são possíveis alvos de preconceito e discriminação. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quatro em cada dez estudantes foram vítimas de bullying na escola, e dentro dessa estatística, há o bullying adotivo, termo estudado pela servidora pública federal, jornalista e escritora, Lisandra Barbiero. Esses desafios podem ser agravados pela falta de educação e sensibilização sobre adoção na sociedade em geral. Lorane finaliza:
“Às vezes, só precisamos de uma pessoa que acredite na gente, e tudo muda. É importante desmistificar esse tema. A maior parte de crianças aptas à adoção no Brasil se enquadram no perfil de adoção tardia. Para reflexão: você ama um filho só quando ele nasce, ou quando descobre a existência dele? Eu os amo desde que soube da existência deles.”