Em fevereiro deste ano o caso de trabalho análogo à escravidão em Bento Gonçalves/RS ganhou destaque nos jornais. A Polícia Rodoviária Federal encontrou mais de 200 pessoas em condições “degradantes”
A “contratante” dessas pessoas fornecia mão de obra para diversas vinícolas da região. Após a investigação, o responsável pela empresa foi preso. As empresas envolvidas (Aurora, Garibaldi e Salton) foram condenadas a pagar R$ 7 milhões por danos morais individuais e coletivos.
Proibido por lei desde 1888, o Ministério Público do Trabalho recebeu 1973 denúncias de trabalho análogo à escravidão em 2022. No início de 2023 surgiram novos casos por todo o Brasil, em especial, no Rio Grande do Sul. O cenário indica aumento nas denúncias e retrocesso no combate à exploração trabalhista e racial, que preocupa especialistas.
A “escravidão contemporânea” (artigo 149 do Código Penal) conta com algumas das condições. Trabalho forçado, aliciamento de pessoas vulneráveis, circunstâncias insalubres, jornadas exaustivas são alguns exemplos. A situação atual alimenta um ciclo de exploração de pessoas em situações socioeconômicas frágeis. Também fomenta discussões de outros temas como raça, classe e justiça.
Aumento das denúncias de trabalho análogo à escravidão
Casos como o gaúcho não são isolados. As heranças de mais de 300 anos de escravidão ainda são percebidas. Já no primeiro trimestre de 2023, 926 pessoas foram resgatadas em trabalho análogo à escravidão, segundo última apuração da Secretária de Inspeção do Trabalho. O número preocupa especialistas, visto que os três meses representam 36% do montante de 2022, com resgate de 2.575 trabalhadores.
Marcela Soares, relata que o problema é mais que histórico estruturante, também é dinâmico conjuntural. A precarização consequente das reestruturações produtivas são algumas das responsáveis. Ela é socióloga e autora do livro “Escravidão e dependência: opressões e superexploração da força de trabalho brasileira”. Segundo a especialista, “A condição de escravidão ilegal ou de semiescravidão foi a realidade do nosso processo de assalariamento, devido a um desenvolvimento regional desigual e às políticas eugenistas de extermínio de negras e negros e políticas de rebaixamento proposital dos seus salários”.
A terceirização do trabalho é outro fator relevante. Antes da Lei 13.429/2017, ela correspondia a 90% das pessoas resgatadas nos dez maiores flagrantes de escravidão, entre 2010 e 2014. “Houve um aumento de 300% do número de pessoas resgatadas em 2022 comparado a 2017.”, destaca a socióloga.
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Recapitulando ações institucionais
O trabalho escravo nunca deixou de existir no Brasil. O presidente Fernando Henrique Cardoso admitiu que existiam casos de trabalho análogo à escravidão, criando as primeiras equipes para fiscalização e resgate em 1995.
A Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) foi criada em 2003, atualmente responsável pelo combate ao trabalho escravo. No mesmo ano surgiu a Lista Suja, que relaciona nomes de empregadores condenados. Esta ação visa restringir acesso à créditos bancários para os criminosos. Ao todo, foram resgatadas mais de 60 mil pessoas nos últimos 25 anos.
Combate ao trabalho análogo à escravidão
A Juíza do Trabalho Fernanda Franklin, afirma que ainda há um longo caminho a se percorrer em relação ao trabalho análogo à escravidão no país, com a prevenção, punição e reinserção dos trabalhadores em empregos dignos e legais depois de passarem por uma situação de exploração. Ela acrescenta que a nova reforma trabalhista vulnerabiliza os trabalhadores e impunibiliza os empregadores criminosos que colocam os funcionários em risco.
A especialista ainda opina que os trabalhadores acabam sendo vítimas desse tipo de crime pois normalmente estão em situação extrema de vulnerabilidade social, muitas vezes estando suscetíveis a entrarem no cenário do trabalho escravo múltiplas vezes, destacando a importância da reinserção no mercado de trabalho após o resgate dessas pessoas.
No Brasil, existem vários desafios para o combate efetivo desses casos. Como a maioria dos casos acontece lugares difícil acesso, a Conatrae se queixa de falta de orçamento pelas dificuldades no resgate das vítimas. Outro problema é a falta de auditores-fiscais do trabalho, há 10 anos não acontecem concursos públicos para o cargo e não há previsão para os próximos.
Há uma série de demandas e tarefas de curto e longo prazo para que os casos de escravidão possam diminuir e que os escravocratas sejam verdadeiramente punidos. Marcela afirma que é necessário implementar políticas de geração de emprego e renda, que garanta dignidade às pessoas, e uma política de transferência de renda que impeça o rebaixamento do valor do trabalho.
Entre as medidas destacadas pela socióloga estão:
-a revogação da reforma trabalhista de 2017, que trouxe o desmonte dos direitos do trabalho;
-regulamentação da Emenda Constitucional n. 81/2014 ao artigo 243 da Constituição Federal, para expropriação de propriedade privada que não cumprir a sua função social;
-a necessidade de aumentar o número de auditores e auditoras fiscais do trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência;
-a elevação de recursos para a implementação dos Planos nacionais e estaduais de erradicação ao trabalho escravo;
-a efetivação de uma ampla reforma agrária tanto para garantir renda como para viabilizar a agricultura familiar.