Professores que também são alunos contam suas experiências dentro da sala de aula virtual
“Vocês estão aí? Estão me ouvindo? Estão vendo minha tela?” Talvez essas sejam as perguntas mais feitas pelos professores em 2020. Milhões de alunos em todo o Brasil sofrem com a dificuldade de adaptação à aula remota, sozinhos, em suas respectivas casas. Junto aos estudantes, os professores vêm encontrando adversidades. Para aqueles que aprendem e lecionam durante a pandemia, a dificuldade é integral durante os dias de isolamento.
Ao pensar sobre as batalhas do campo educacional, vale lembrar a realidade das pessoas que vivem os dois lados da mesma moeda: professores que também são estudantes.
A didática através das telas
“Pra mim foi um verdadeiro banho de água fria”, conta Heitor Ferraz, de 54 anos. Ele é professor de Língua Portuguesa da Faculdade Cásper Líbero e aluno de pós-graduação na Universidade de São Paulo. Na experiência de professor, o que tinha programado para o começo do ano letivo foi por água abaixo. Seu planejamento era sempre ter uma roda na sala de aula e algumas na rua. Descrições de bairros, conversas com anônimos. Seu curso passaria por uma experiência urbana. “Tive de alterar tudo o que foi pensado para esse novo mundo do isolamento, esse mundo do ‘dentro de casa’”.
Júlia Fuente é professora de inglês na Skill Rudge Ramos, aluna de Letras-Tradução na Universidade Metodista de São Paulo, e está escrevendo seu TCC no isolamento. A professora-aluna de 21 anos conta a mudança em seu cronograma devido à pandemia: “Tive que me adaptar muito e aprender a mexer em plataformas online, porque apesar de jovem, eu sou péssima com tecnologia, então tive que aprender na marra”.
A adequação também aconteceu com Fernando Uraguti, de 34 anos, professor de Direito da Faculdade de Peruíbe e aluno de duas pós-graduações à distância. Para ele, o início das aulas remotas foi desafiador. “Foi bem complicado no sentido de criar todo o material. Eu não tinha costume de fazer videoaulas ou lives. No começo, tive vergonha”.
Reconhecer as dificuldades dos estudantes e dos professores no cenário de uma crise sanitária global é mais que necessário. Levando em conta a opinião dessas pessoas que vivem os dois lados da mesma moeda, cabe a questão: 2020 foi um ano perdido?
Veja mais em ESQUINAS
O desafio de fazer um TCC durante a pandemia
“A corda sempre rompe no lado do professor”, diz psicólogo
Diretora do segmento de Educação para Adultos diz que alunos querem repetir o semestre
Dessa vez não é a turma do fundão
Desde março, um dos principais obstáculos enfrentados pelos professores é a adaptação do ensino para o ambiente digital. “A pandemia de certa forma está atrapalhando a minha didática. Dar aula online pra criança é um grande desafio, mas também estou descobrindo muita coisa nova que se eu estivesse na sala de aula eu não saberia, não descobriria”, relata Júlia.
Para Fernando, a experiência como “professor online” serviu para ressaltar as adversidades enfrentadas pelos docentes: “Primeiramente, [a dificuldade] de montar o material, depois conseguir interagir com os alunos, pensar num cronograma lógico. Você acaba percebendo o real trabalho e dando mais valor.”
Um dos reflexos derivados dessa mudança de âmbito é a resposta dos alunos durante as aulas remotas. De acordo com Heitor Ferraz, o silêncio incomoda, pois as comunicações que temos pedem uma ocupação do espaço. “Precisamos preencher o silêncio. O professor tece o tecido da aula a partir das interações dos alunos. Sejam elas de entendimento, de dúvida, de felicidade ou de raiva. Isso faz com que o professor passe a enxergar as coisas de uma maneira diferente da habitual”.
Nas aulas presenciais de inglês da teacher Júlia, a agitação dos alunos era reduzida por brincadeiras no quintal da escola. Agora, a professora se depara com outro desafio: manter a concentração das crianças. “Tive que mudar bastante a didática e os jogos que eu dava. Segurar uma criança no computador por uma hora e quinze é uma luta, se a gente como aluno não consegue direito, imagina a criança.” De aulas temáticas a jogos de tabuleiro, para dar uma aula de sucesso, Júlia teve que procurar outros modos de manter os alunos atentos remotamente.
Por outro lado, enquanto uns enfrentam a agitação, outros enfrentam o desânimo, a ausência dos estudantes e a solidão.
“90% dos alunos resolvem não abrir a câmera, não se comunicar.” Para Heitor, isso faz com que as aulas percam em dinâmica. “Claro que podemos criar dinâmicas novas, como vídeos, apresentações de aula, leitura compartilhada. Mas, mesmo assim, não tem a mesma intensidade de uma sala de aula”, comenta.
A professora da Skill também reclama do sentimento de isolamento: “Acho que é bem solitário pro professor. Para o aluno também, mas a gente tem trabalho em grupo, então a gente conversa. O professor não tem esse contato. Então é bem solitário”.
Trocando as carteiras
Fernando confessa que como “aluno online” não se sai tão bem e acaba sendo um pouco displicente. “Claro que a gente faz, mas a gente acaba deixando um pouquinho pra depois. Sei que o aluno em casa tem um monte de distração, assim como eu. Às vezes tem filhos, marido, tem que cozinhar, Netflix, uma série de coisas que te distraem”.
Na Pós graduação, Heitor afirma sentir diferença na presença e na participação dos alunos durante as aulas: “Tem rolado debate. É uma aula muito expositiva de quase duas horas. Depois temos uma hora de debate. Tem que ter um engajamento. Tem que no mínimo ler um texto, saber discutir, saber perguntar. O maior engajamento é assistir à aula e fazer suas anotações.”
Mesmo que para alguns as aulas remotas sejam difíceis, para a teacher Júlia o seu último ano na graduação está sendo mais fácil do que se estivesse indo até a faculdade para a orientação do seu TCC. Entretanto, no começo do isolamento, ela e a mãe dividiam um único computador: “Chegou uma hora que eu precisava fazer o TCC e comecei a fazer à mão. A parte teórica eu tenho num caderno, fiz escrita a lápis”, conta.
2020, um ano engavetado?
O questionamento que fica é sobre a perda — ou não — de 2020. No campo educacional, há dados: de acordo com o levantamento do Programa Cidades Sustentáveis, 39% dos gestores municipais creem que a educação foi a área mais impactada pela pandemia.
“Acredito que 2020 não foi um ano perdido para quem se dedicou”. Fernando explica que antes do coronavírus ele não teria como fazer suas pós-graduações devido à distância de sua cidade natal.
Para Heitor, é outro aprendizado. “Ainda estamos nesse compasso de espera de que as coisas voltem a ser o que eram. Aí a gente não consegue encarar essa experiência como uma outra experiência.” Apesar de todas as dificuldades enfrentadas, o professor acredita que a solidariedade sempre é um caminho.