Mário “Aranha”, ex-atleta do Santos e Palmeiras, fala sobre o racismo no futebol, as complicações após infecção por covid-19 e seu livro “Brasil Tumbeiro”
Multicampeão, empoderado e consciente. Essas são três características que podem ser atribuídas a Mário Lúcio Duarte Costa, de 40 anos, ou como é conhecido pela mídia, “Aranha”.
Em entrevista ao CAVHCAST, do Centro Acadêmico Vladimir Herzog, o ex-goleiro fala sobre sua infância e sua experiência precoce com o racismo: “Não tive a felicidade de crescer em um ambiente fora do racismo, algumas pessoas pela ignorância não enxergam o problema. Fui conhecer o racismo muito cedo, então eu sempre tive esse combate minha vida inteira, isso faz parte de mim.”
Aranha já atuou na Ponte Preta, Atlético Mineiro, Palmeiras, Joinville e Avaí, mas foi na passagem pelo Santos, de 2011 a 2015, em que atingiu o auge de sua carreira, conquistando o título da Libertadores em 2011. Por outro lado, também foi atuando no time da baixada santista que o guarda-redes viveu o momento mais emblemático de sua carreira.
Em uma partida entre Santos e Grêmio, válida pelas oitavas de final da Copa do Brasil em 2014, o então goleiro foi alvo de ofensas racistas por parte da torcida gaúcha. A imagem de uma torcedora se referindo ao atleta como “macaco” gerou grande repercussão não só no mundo esportivo, como também levantou importantes discussões nas redes sociais na época. A denúncia do jogador e o debate gerado após o fato rendeu a Aranha o Prêmio de Direitos Humanos, em 2014, e deu início a grandes movimentações da luta antirracista no futebol.
O racismo estrutural e a luta antirracista para o ex-goleiro Aranha
“É muito difícil lidar com a questão do racismo no Brasil sem falar do racismo estrutural e mostrar os seus efeitos”, diz Aranha ao abordar a pauta que marcou sua trajetória, tanto profissional quanto pessoal. Citando Abdias do Nascimento, o ex-atleta explica que para entender o racismo no Brasil “basta ter interesse que você perceberá o quanto é escancarado”.
Para ele, a manifestação do racismo não acontece necessariamente de forma direta, com ofensas verbais ou físicas, mas de estruturada em uma sociedade em que as pessoas negras têm menos oportunidades e, consequentemente, menos chances de se tornarem indivíduos bem sucedidos passíveis de ascender socialmente. “Quando você recebe seu salário, em qual mão negra você coloca esse dinheiro?”, questiona.
O ex-goleiro também aponta que o racismo estrutural traz efeitos principalmente no subconsciente social: “Tempos atrás vi um jogador do Flamengo dando uma entrevista que nunca tinha sofrido racismo. Se o futebol foi a única maneira dele mudar de vida e mudar a vida da família dele, ele sofreu racismo a vida inteira. O racismo estrutural já agiu na vida dele, porque você não pode ficar limitado apenas ao futebol e a música para mudar de vida, as pessoas que não são negras não tem só esse caminho e somente essas opções.”
“A gente sabe que todos aqueles que se posicionaram de alguma forma contra o racismo foram silenciados e até mesmo apagados. A história mostra que eles foram prejudicados”, pontua Aranha sobre o posicionamento de pessoas públicas na luta antirracista. De acordo com o ex-goleiro, essa é uma pauta que deve ser abordada com cautela.
A influência do racismo na cultura do futebol
Recentemente, houve grande polêmica no mundo futebolístico após o goleiro Edouard Mendy, do Chelsea, não estar entre os 30 jogadores que disputarão a Bola de Ouro de 2021. O fato gerou debate sobre a visibilidade dos jogadores negros e de origem africana no Brasil e ao redor do mundo.
Segundo Aranha, para entender essas questões se deve voltar na origem do esporte no País: “A origem do futebol e de todos os esportes no Brasil é extremamente racista. O futebol não chegou no Brasil para ser praticado por negros e pobres, entende? Foram criados vários artifícios, várias barreiras, para impedir que o negro jogasse futebol.”
O ex-atleta acredita que grande parte das críticas e exigências sofridas por atletas negros no Brasil têm origem racista. “O goleiro negro não é confiável, então se eu fazia dez partidas e errava em uma as pessoas iam apontar: ‘eu disse que não era confiável’ e um goleiro que não era negro ia mal oito partidas, quando pegava um pênalti: ‘viu? É só dar tempo de jogo, só esperar que ele vai amadurecer’”, aponta Aranha.
Apesar de sempre ter se posicionado ao longo de sua carreira nas pautas raciais, Aranha afirma que tomar a pauta para si nos dias de hoje exige cuidado por parte dos jogadores, principalmente por conta da polarização política no Brasil.
Porém, o ex-jogador conta que vê com otimismo as futuras gerações. Para ele, com a internet e a globalização, em um futuro próximo, existirão ídolos ainda mais bem preparados para falar sobre política e diversos outros assuntos importantes para a sociedade.
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“Pensei que fosse morrer”
Apesar de revelar sempre ter tido medo da doença, em junho de 2021, Aranha contraiu o vírus da covid-19. O ex-jogador chegou a ficar quatro dias internado na UTI e ter 50% dos pulmões comprometidos. “Eu fiquei muito ruim mesmo. Por alguns dias eu fiquei mais do lado de lá do que de voltar para casa, mas tive a felicidade de conseguir me recuperar e ter a oportunidade de continuar fazendo o que eu venho fazendo”, lembra.
Aranha conta que a situação o inspirou para seguir com o seu trabalho. Atualmente, Mário Aranha é um ativista da luta contra o racismo e tem uma coluna de esportes no site UOL. Recentemente, o ex-goleiro lançou um livro pela Editora Mostarda chamado “Brasil Tumbeiro”, no qual narra a história do negro no Brasil, desde o começo da escravidão até os dias atuais.
Aranha conta que a ideia inicial do livro era que fosse distribuído como material educativo. Dessa forma, ele montou uma equipe e contratou um escritor para que a narrativa atendesse todas as exigências do Ministério da Educação (MEC) e por outros órgãos reguladores. Contudo, o autor celebra que a obra tenha feito um sucesso além do esperado e revela que a Biblioteca de Washington, nos Estados Unidos, já solicitou alguns exemplares para o seu acervo.
Para Aranha, o seu livro pode auxiliar no debate sobre questões raciais, além de divulgar a pauta para além das fronteiras territoriais: “Na minha época era rap, não tinha Google, não tinha internet, não tinha nada. Era rap, consumia muito rap para saber o que se passava e o que acontecia onde eu morava e em outros lugares”.
O livro físico pode ser adquirido no site da Editora Mostarda por R$34,90.
Confira a entrevista completa no link.