Cabeça no lugar: a mentalidade dos jogadores de futebol e seus desafios “fora das quatro linhas”
Por André Bachá, Felipe Labrada, Gabriel Gamino, Guilherme Agrella, Henrique Spotti e Valentine Boutsiavaras : fevereiro 8, 2023
Para além da formação de jogadores profissionais, especialistas do meio relatam a importância das categorias de base para formar seres humanos e suas carreiras, mesmo fora dos campos
Nascido em Brasópolis (MG), ele partiu com 11 anos para São Paulo, seguindo o exemplo dos jogadores que tanto admirava, e procurando se tornar um deles dentro do seu clube do coração. Nunca foi unanimidade entre as promessas das categorias de base e, em um momento importantíssimo, na semifinal da Copa São Paulo de Juniores de 2022, falhou contra o rival Palmeiras.
Então, como uma obra do destino, foi convocado para a equipe profissional do São Paulo Futebol Clube, na qual se mostrou peça fundamental no time titular e, devido ao grande destaque alcançado, foi coroado com o prêmio de revelação do Campeonato Paulista. Esse é Pablo Maia.
Pablo é um bom exemplo de jogador que conseguiu se profissionalizar depois de sair da categoria de base, principalmente após uma decepção em um jogo tão importante. “Todo mundo me deu apoio e incentivou. A gente fica chateado pelo jeito que foi, mas todos me disseram para levantar a cabeça porque tinha muito mais pela frente”, afirma Pablo sobre essa superação.
A importância de ter uma outra saída caso a carreira como jogador não vingue é pontuada por Pablo, que conta como a coordenação das categorias de base sempre influenciou os atletas a terem outras alternativas:
“Eles [coordenação da base] sempre falavam de ‘plano b’ nas atividades que tínhamos com psicólogo. Se você pensar que nem todos que estão lá vão chegar [no futebol profissional], teria muita gente que pararia no meio do caminho, então eles sempre colocavam na nossa cabeça para termos um ‘plano b’ ”, pontua.
Mas nem todos conseguem o feito de chegar ao tão sonhado futebol profissional. Segundo estudo realizado pelo doutor Antônio Jorge Gonçalves e pelo professor Leonardo Bernardes, no artigo“Jogadores de Futebol no Brasil”, as chances de se tornar um jogador profissional no chamado País do Futebol são mínimas, uma vez que, aproximadamente, apenas 1,5% dos jovens consegue êxito em suas jornadas.
Sonhos interrompidos
João Kiefer, 23 anos, é mais um que entra para a estatística de atletas que não conseguiram obter sucesso na carreira. Começou cedo no esporte, sendo chamado para jogar no São Paulo Futebol Clube aos 13, depois de se destacar durante o Efipan (Encontro de Futebol Infantil Pan-americano), chamando a atenção do time tricolor.
Em 2015, foi campeão da Copa Votorantim, ganhou a Copa Ouro e se destacou no Centro de Treinamento de Cotia. Kiefer era o principal atacante da “Geração 99”, e tinha um futuro brilhante no esporte, que acabou indo por água abaixo depois de uma lesão que o deixou parado por quatro meses.
Em entrevista ao jornalista Gabriel Fuhrmann, o ex-jogador conta que a lesão que teve na coxa, a primeira grave da sua carreira, prejudicou muito o seu físico, e isso, somado à perda recente de seus avós, fez com que ele questionasse o seu futuro:
“No mesmo período da minha lesão, eu perdi dois avós, e ainda tinha aquele pensamento de ir para o profissional ou não. Tudo isso atrapalhou o meu foco, o meu psicológico, e ali começou o meu declínio”.
Kiefer optou por deixar o São Paulo e voltar ao Rio Grande do Sul, sua terra natal, onde teve uma breve passagem pelo Grêmio, e em seguida pelo Camboriú (SC), onde resolveu deixar de vez sua carreira como atleta.
João hoje é empresário, e acredita que não mudaria nada em sua trajetória. Ele relata que o tricolor paulista o ajudou muito durante os anos que esteve lá, e que fornecia excelente estrutura para os jogadores, como moradia, alimentação, escola e apoio médico.
“O atleta só vai se preocupar em estudar e jogar futebol, porque o São Paulo primeiro preza o lado humano, ele quer que cresça uma pessoa, caso não dê certo como jogador, o clube quer que o cara se desenvolva, estude, tenha uma vida estável. Quer que tenha uma vida fora do futebol.”
Ele ainda acrescenta que, para o clube, era de extrema importância que o jovem atleta focasse nos estudos: “Podia ser titular, capitão, se ia mal na escola, não jogava”. Essa política da instituição contribuiu muito para Kiefer, que, assim que saiu do esporte, foi fazer faculdade e montou o seu próprio negócio.
Mesmo assim, apesar de ter deixado de lado o seu futuro como jogador, João ainda tem planos para no futuro continuar trabalhando no meio, mas dessa vez do outro lado da cena, ajudando jovens que têm o sonho de jogar profissionalmente.
No Brasil, as categorias de base são o principal meio de ingressar no futebol profissional. Segundo Gabriel Puopolo, ex-psicólogo do São Paulo, o trabalho de formação de atletas passa por um seleto grupo de profissionais, com participação essencial dos psicólogos, pois eles orientam o jovem a como se comportar e lidar com todas as questões dessa fase.
Formado em Psicologia pela PUC e bacharelado em Esporte pela USP, Gabriel tentou a sorte como atleta de Triathlon durante grande parte de sua adolescência e chegou a ser destaque no esporte, porém não tinha tanto interesse em se profissionalizar na área.
Determinado a concluir seus estudos, Puopolo tomou uma difícil decisão que seria de extrema importância para o decorrer de sua carreira.
“Foi aí que migrei, era um atleta amador, que tinha um desempenho ótimo na categoria, e tive que escolher entre me profissionalizar ou estudar. Durante os primeiros anos no esporte, percebi que eu tinha um interesse muito grande por tentar compreender os aspectos psicológicos, e então estudei para isso.”
Gabriel se jogou no mundo da psicologia esportiva com seu primeiro trabalho no Barueri, em 2006/2007, porém seu destaque maior foi mesmo como psicólogo do esporte no São Paulo Futebol Clube.
Questionado sobre sua área, Puopolo explica que seu trabalho na categoria tinha como foco principal a formação de não só atletas, e sim humanos e suas carreiras, assim como foi dito por João Kiefer.
“O maior feito de uma categoria de base é formar um humano e uma carreira, seja dentro ou fora do futebol. O número de jogadores que não se firmam no futebol profissional é muito alto. Por isso o processo da categoria de base é importante, pois eles podem migrar para outro tipo de mercado com uma certa formação.”
O psicólogo Gabriel Puopolo, Auro, André Jardine e o diretor da base do São Paulo, Marcos Francisco de Almeida — Imagem: Igor Amorim / saopaulofc.net
O caso da lesão de João Kiefer é um entre os milhares de atletas que foram forçados a colocar um fim prematuro em suas carreiras. A parte mental dos jogadores precisa ser muito trabalhada em um momento delicado como o da lesão.
Gabriel deu sua opinião e explicou qual conduta é necessária para que o atleta não sofra também psicologicamente com incertezas, por exemplo.
Puopolo também dá ênfase à importância da vida escolar dos jogadores. É essencial para o clube que os jogadores tenham bons resultados acadêmicos enquanto estão na base.
Tudo isso é importante não somente para que os jovens tenham uma segunda opção caso não joguem futebol profissionalmente, como também para a socialização deles, para que tenham uma vida fora do esporte.
“O São Paulo paga todo o processo escolar deles, desde quando o menino chega para se hospedar no clube. A instituição tem como obrigação cobrir os custos da educação de qualidade, pois é uma maneira para os atletas socializarem e saírem de uma bolha, compreender que existem outros adolescentes como eles que vivem outra realidade. A escola serve também para que os alunos desenvolvam habilidades cognitivas, como pensar mais humanamente e entender uma forma mais complexa da língua, junto a um pensamento mais abstrato. Isso pode ser útil até mesmo para o jogo.”
Contextualizando sobre essa maneira de pensar para agir no mundo do futebol, Pablo Maia disse que o jogador que está na transição base-profissional necessita se adaptar a uma maneira de jogo mais racional, diferente das categorias de base, onde as partidas se baseiam mais em correria.
“Eu acho que vai muito mais da experiência, de ter uma cabeça mais madura, porque no sub-20 o jogo é muito mais correria e no profissional é mais pensado. Acho que essa é a grande mudança.”
O futebol é um desafio, dentro e fora de campo. Muitos jovens têm o sonho de se tornarem jogadores, e correm atrás desse objetivo.
Começando pelas categorias de base, onde conhecem vários outros atletas, que passam a fazer parte do seu dia a dia. Fazem dos clubes as suas casas, e de seus companheiros de time, seus amigos.
Apesar de estarem em busca de um sonho, o caminho que percorrem para chegar ao nível profissional é repleto de obstáculos.
Nem todos são capazes de alcançar o nível técnico e psicológico exigido pelo futebol profissional, como ocorreu com João Kiefer, mas outros têm a competência e a “cabeça no lugar”, como Pablo Maia, para viver a vida de seus sonhos.
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