“De sete mil jogadores, apenas um vira profissional”: o estreito funil das categorias de base do futebol brasileiro - Revista Esquinas

 “De sete mil jogadores, apenas um vira profissional”: o estreito funil das categorias de base do futebol brasileiro

Por Guilherme Fonseca e Pedro Consoli : janeiro 31, 2022

Gustavo Bandeira, jogador do Brusque FC, durante uma partida de futebol.

Atletas da categoria de base narram os desafios que encontram para consolidar a carreira como jogadores profissionais dentro do cenário nacional

Como quase uma regra, muitos meninos, desde pequenos, sonham em se tornar jogadores de futebol. Quando se deparam, contudo, com todas as barreiras que existem nesse meio, muitos ficam para trás e decidem por não continuar tentando chegar no lugar que sempre desejaram.

A verdade é que o luxo, a fama e o dinheiro que jogadores como Cristiano Ronaldo, Messi e Neymar esbanjam são apenas uma fachada que esconde todas as mazelas por quais eles passaram até chegar lá e que é quase uma ilusão. Afinal, são poucos os que chegam ao topo dessa montanha tão difícil de escalar.

“Tem que começar de algum lugar”

Com 17 anos, Gustavo Bandeira é mais um garoto entre milhares que trabalham para chegar ao alto da montanhado futebol. Nascido em Sarandi-PR e de origem humilde, desde pequeno viu na bola uma chance de realizar o improvável e alçar grandes voos.

O lateral direito conta que teve, no São Bernardo-SP, a sua primeira experiência no futebol, com 15 anos, junto de seu irmão. “Foi a primeira vez que fiquei longe de casa, então a gente tem que amadurecer mais cedo, né’’.

O atual clube de Gustavo, o Brusque FC, apesar de estar entre os 40 melhores do país – disputa neste ano a série B do Brasileirão –, não atende seus atletas com uma infraestrutura que possa ser considerada de primeiro nível. Na visão do atleta “[isso] é o que acontece na maioria dos clubes’’.

Em um jogo de futebol, existem dois elementos fundamentais para que ele aconteça: o campo e a bola. Por isso, não é difícil entender que para que um time e seus atletas possam se desenvolver nos jogos e nos treinos é preciso de mais de um campo de qualidade. Quanto melhor essa estrutura, maiores as chances de seus atletas estarem em boas condições para os jogos, como se vê nos grandes clubes brasileiros e mundiais que não pecam no quesito.

Gustavo explica que o Brusque conta com dois campos, mas um deles fica inutilizável em dias de chuva, o que concentra os mais de 70 atletas em um único campo de grama artificial e inviabiliza seus já limitados treinamentos usuais. De todo modo,  já é mais do que no São Bernardo. “Lá só tinha um campo. A gente treinava e jogava lá’’, relembra Gustavo.

Além do campo, o futebol também exige que os jogadores tenham uma disposição física impecável para conseguirem jogar em alto nível. Por isso, ter uma boa estrutura de preparação física com academias, centro de fisioterapia e profissionais de qualidade é algo extremamente importante e capaz de decidir campeonatos.  Nesse contexto, o que o lateral conta consegue explicar muito sobre a realidade dos clubes pequenos no país:

“No São Bernardo a gente tinha academia só uma vez por semana. Aqui no Brusque, academia eles não disponibilizam, quem quiser vai correr atrás pra fazer sozinho. Eles não fazem um trabalho físico na academia, só trazem os pesos para o campo, na segunda-feira geralmente’’.

Como parte da rotina de todo atleta, independentemente do esporte, a dieta é um elemento indispensável para que o ser humano atinja o máximo de sua capacidade física e consiga desempenhar o que se espera de um atleta de alto rendimento, evitando lesões e se colocando em forma para o jogo. Para o lateral do time catarinense, porém, o que se vê é uma realidade em que nem sequer um nutricionista o clube possui.

Como cardápio dos atletas, Gustavo relata: “São 4 refeições por dia. O café da manhã aqui é um pão, daí tem mortadela, margarina, doce de leite. No almoço geralmente é linguiça, frango assado. Hoje, por exemplo, foi polenta com carne moída. A gente janta umas 17h30. Na maioria dos lugares é cedo assim porque a gente dorme cedo. Geralmente mais à noite eles disponibilizam o café da noite, um café com leite, um chá, geralmente é assim em todos os clubes’’.

Como consequência, o garoto explica que é comum após os jogos “sentir muitas câimbras’’, o que se torna mais perto de uma regra do que exceção na realidade dos clubes pequenos do Brasil.

O que se observa, na situação de Gustavo e de milhares de meninos espalhados pelo país, é a luta diária para chegar na posição que hoje ocupam os jogadores que o público costuma exaltar. Em um contexto no qual grande parte dos garotos que correm atrás desse sonho possuem origens humildes, a condição financeira atingida pelos atletas de elite é uma meta difícil de alcançar. Segundo estudo feito pela CBF, 96% dos atletas de futebol no país ganham menos de 5 mil reais mensais.

“A gente aqui no sub-17 não recebe salário, é com nosso dinheiro mesmo. Também não recebe ajuda de custo, mas em outros clubes acho que sim’’, relata Gustavo. Para o atleta, essa dificuldade faz parte do risco de correr atrás do sonho: “tem que começar de algum lugar né, mesmo se for de baixo pra ir subindo’’.

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O cotidiano nos grandes clubes

Dentro de um grande clube, a realidade é diferente. Nicolas Setta, de 18 anos, atuou nas categorias de base de Fluminense e Atlético-MG, onde a estrutura é de outro mundo em comparação à do Brusque.

No clube carioca, o centro de treinamento conta com um campo oficial, seis outros campos – três de grama sintética e outros três de grama natural –, academia, piscina e um alojamento que, segundo Nicolas, “parecia um hotel”. A alimentação era regrada e pautada por nutricionistas e os atletas ainda tinham direito a massagistas e outros tratamentos de regeneração física. No Atlético-MG “a estrutura era ainda melhor”, afirma Nicolas.

“As estruturas dos bons clubes conseguem preparar bem os jogadores. Mas não se comparam com as dos clubes europeus”, opina o jogador.

Durante seu período como jogador do Galo, Nicolas presenciou um problema crônico das categorias de base do Brasil: bons jogadores são preteridos por aqueles que têm dinheiro ou empresários. Apesar de ser um dos únicos que recebia salário, ele viu jogadores em ótima fase sendo mandados embora e substituídos por outros que “não eram do mesmo nível”. O mesmo aconteceu com ele.

Durante o Campeonato Mineiro sub-15, o Atlético-MG havia ganhado o jogo de ida por 3×0. Na volta, Nicolas fez os 3 gols e eliminou o adversário. No jogo seguinte, contra outro time, ele fez mais um. Foi 2×0. “No outro jogo de volta, o treinador me tirou e nós tomamos a virada. Foi na semifinal, nós tomamos a virada e perdemos”.

No primeiro treino após a derrota, o jogador ficou sabendo que havia sido cortado. Apesar de sempre dizer que “tudo na vida você tem que ter um foco. Se você tiver foco, você chega”, Nicolas adiciona que “hoje em dia, você precisa ter um empresário.”

José Nogueira, ex-psicólogo das divisões de base do Flamengo, concorda. “O jogador, hoje, fica na mão do empresário, às vezes até moram na casa deles. O atleta é um troféu e o clube é a vitrine”. É vantajoso para um empresário ter seu atleta em um clube grande, afinal, “quanto maior o clube, maior a vitrine”.

As dificuldades na formação

Mesmo quando as coisas dão certo, os obstáculos continuam. Desde criança, jogadores de futebol que atuam por clubes mais consolidados tendem a ser tratados apenas como objetos de lucro. Consequentemente, sua única opção é dar certo enquanto atleta profissional – caso contrário, acabarão em maus lençóis devido a falta de preparo enquanto cidadãos, preparo este que deveria ser oferecido pelos clubes.

“Os moleques deviam ter educação financeira e plano de vida como pontos fundamentais de sua formação – são o ponto mais importante a serem trabalhados. A gente vê muitos casos no futebol de jogadores famosos que conquistaram muita coisa e perderam tudo. De cabeça aqui consigo lembrar do caso do Muller, ex-craque do São Paulo que torrou tudo com carros, ostentação, essas coisas”, diz Nogueira.

Durante seus 4 anos trabalhando no Flamengo (2013-2017), ele conta que viu inúmeros atletas perderem o foco em seu objetivo maior – a profissionalização – devido ao deslumbre com o luxo em que vive um jogador de futebol profissional. A falta de suporte familiar também era um problema. Como psicólogo, trabalhou com dezenas de jogadores e frequentemente questionava-os: “do que adianta ter dinheiro se não tiver planejamento?”

Sem isso, o empresário, que costuma ser guiado apenas pelo lucro, acaba perdendo o jogador, e este também acaba se perdendo enquanto atleta – enquanto o clube também se prejudica. “Os clubes brasileiros precisam de responsabilidade prática e administrativa”, completa.

O certificado de clube formador da FIFA que existe “ajuda o clube a andar na linha”, segundo Nogueira. O Brusque, por exemplo, não possui a certificação. Já o Atlético-MG, Fluminense e Flamengo, sim. Quanto à discrepância nos níveis das estruturas, Nogueira comenta que “estrutura não tem a ver com divisão, tem a ver com boa vontade, visão de futuro, investimento e desejo de ver o atleta suceder”.

Quanto vale o sonho?

Claramente não é fácil ser um atleta de base no Brasil. A pressão é imensa e apenas parte de sua carreira está sob o controle do jogador. “Cada passe conta, cada lesão conta. De sete mil jogadores, apenas um vira profissional”, afirma Nogueira.

Um questionamento, até certo ponto poético, é o de quanto vale um sonho? Se para cada pessoa que testemunha situações e contextos diferentes da sociedade a resposta pode ser distinta, a classe dos jogadores de futebol pode ter uma ideia em conjunto que desde a base é formulada.

O preço de um sonho para um menino que desde os 15 vai morar longe da família em alojamentos modestos, com refeições não condizentes com sua profissão e um nível de competição, pressão e luta bastante intenso desde tão cedo é, no mínimo, alto. O que talvez mais atormente o sono desses meninos? As incertezas de tamanhos esforços não resultarem em nada, apenas em uma juventude perdida, algo comum na busca por esse sonho.

O que se vê no esporte mais popular do país é um reflexo do que acontece fora dele. A desigualdade se faz presente e assusta quem observa como pode ser diferente o caminho de um menino que joga em um grande clube em relação a um que joga em um time pequeno, o que acontece por vezes não em razão do mérito do jogador, mas por interesses econômicos relacionados a empresários, por exemplo.

Gustavo persiste no sonho e afirma com todas as letras: “Quero retribuir para minha família todo o esforço que fizeram por mim, com foco e humildade sei que posso chegar lá”.

Nícolas, por motivos pessoais, decidiu seguir outro caminho, mas deixa um recado e pedido ao futebol de base brasileiro: “Invistam. Invistam nas categorias de base, por favor”.

Pela parte de Nogueira, o esporte vai muito além das quatro linhas, uma bola e um gol, envolve a vida e o sonho de milhares, o que o faz chegar à conclusão: “Nunca é só futebol. Tem muito mais além do futebol”.

Editado por Rodrigo Ratier e Anna Casiraghi

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