Longe das quatro linhas: setoristas de futebol explicam rotina da profissão na pandemia - Revista Esquinas

Longe das quatro linhas: setoristas de futebol explicam rotina da profissão na pandemia

Por Gustavo Solitto e Iúri Medeiros : outubro 5, 2021

Sem acesso aos estádios e centros de treinamento, setoristas relatam as dificuldades na cobertura dos grandes clubes na crise sanitária

Ir até o Centro de Treinamento (CT), viajar ao lado dos clubes, entrevistar jogadores e técnicos, ter contato direto com as fontes, entre outras tarefas. Essa é a vida habitual de setoristas de um grande clube: serem a “ponte da notícia”, aqueles que levam aos torcedores todas as informações sobre o seu time do coração.

A rotina desgastante pode parecer de certa forma algo caótico na agenda dos jornalistas esportivos. Mas, com a chegada da covid-19, o que eles mais querem é o retorno da loucura do dia a dia. “Eu sinto falta da rua, de entrar na viatura da TV com a minha equipe, sair e ir para o treino, ir ao jogo, para aeroportos, chegar na cidade, correr em direção hotel para registrar a chegada do time, ir até o estádio, fazer os jogos”, aponta Flavio Ortega, setorista do Corinthians desde 2004, atualmente nos canais Disney.

O trabalho costuma ser árduo. Tarefas como coberturas de treinos, contato diário e reportagens especiais para seus respectivos veículos são substituídas por constantes checagens no celular e uma maior reprodução do material já pronto da assessoria de imprensa. O isolamento social não só atrapalhou o aproveitamento da profissão, como a busca por notícias, que se tornou muito mais difícil sem o acesso direto à fonte.

“Quando era presencial, você tinha a possibilidade de encontrar a notícia na sua frente, observando algo diferente no treino como uma conversa. Você ouve de canto um funcionário do clube, todas essas possibilidades acabaram durante a pandemia”, diz Pedro Nascimento, setorista que cobre os clubes de São Paulo pela Gazeta Esportiva.

Gabriel Amorim, setorista do Palmeiras que trabalhou no site Nosso Palestra, destaca a dificuldade de apuração estando longe do clube. “Para mim, o que é mais difícil é confiar na veracidade das informações que chegam para a gente, pelo fato de não acompanharmos ou não estarmos na rua, a gente só fica sabendo das coisas por assessor ou por fotos e vídeos. A checagem de informação fica realmente complicada, porque perdemos essa base para confirmar o que está acontecendo, nem sempre as assessorias estão aptas a dizer o que está rolando mesmo”.

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Priscila Penhorães, setorista do São Paulo na TNT Sports, conta suas experiências cobrindo o atual campeão paulista: “A TNT não envia repórter para a rua de jeito nenhum, a não ser que seja transmissão da própria TNT. Como a gente só tem Campeonato Brasileiro e Champions League, acaba que não vamos quase nunca ao estádio e o CT também tem acesso restrito para jornalistas”.

“Acho que esse é o principal fator porque faz muita diferença, principalmente na apuração de momentos difíceis do clube. Fica difícil ter aquele ‘feeling’ de estar no lugar, de enxergar como está a situação. O São Paulo, por exemplo, na época da demissão do técnico Fernando Diniz ficou uma confusão, já que, ao mesmo tempo em que respondiam a gente, a informação não batia”, lembra.

Os clubes na pandemia

Não é só a rotina do setorista que mudou, os clubes também precisaram se readequar sem a cobertura diária da mídia. O material para a imprensa teve que ser reforçado e novas estratégias para realização de coletivas foram implementadas. O Corinthians, por exemplo, foi um clube que teve dificuldades com essa nova realidade e acabou criando sua própria “bolha”, como relata Flavio Ortega.

Segundo ele, é muito mais cômodo para os clubes que a imprensa não fique tão perto dos centros de treinamento, observando erros dos treinadores, dos jogadores e cobranças mais fortes dos técnicos com atletas específicos. Por outro lado, o setorista afirma que o clube também perde com a falta de cobertura da mídia, uma vez que já não existem mais as coletivas com banners publicitários e anúncios de patrocinadores.

“O Corinthians teve um  pouco de dificuldade em lidar com essa situação, então ele se fechou muito”, lembra. “Chegou um momento em que o time estava mal no campeonato e ficou um espaço muito grande de tempo sem você conseguir uma exclusiva ou abordar temas interessantes com dirigentes”. De acordo com Flávio, os assuntos mais delicados, como dívidas do clube, contratações e questões políticas internas, são os mais difíceis de serem abordados sem as entrevistas coletivas.

“Não é fácil trabalhar sem ter o contato diário, sem estar ali para poder laçar um jogador em uma zona mista, para poder pegar o jogador na chegada de um ônibus, de um hotel, coisa que o clube tem mais dificuldade de blindar.”

Um ponto de destaque nas novas formas de lidar com a falta de contato direto são as entrevistas coletivas virtuais, realizadas por plataformas como o Google Meets ou Zoom, por exemplo. Diante dessa nova realidade, os clubes lidam de formas diferentes.

“No Corinthians, por exemplo, você tem um grupo em que os jornalistas mandam os áudios com as perguntas. Isso deixa a coletiva repetitiva, já que, muitas vezes, você não consegue parar para ouvir o áudio do outro jornalista. Perde a dinâmica de uma entrevista e os ganchos de perguntas de colegas. O produto jornalístico acaba perdendo muito”, diz Pedro.

A relação dos setoristas com as redes sociais

Sem ir às ruas, é um consenso entre os setoristas que os laços com as redes sociais foram fortalecidos. A produção de conteúdo online e a relação com o torcedor aumentaram desde o início da pandemia, como conta Pedro: “Pelo trabalho ser home office, você acaba tendo um tempo ‘livre’, com a ressalva de que, no jornalismo, é difícil você ter tempo livre por estar sempre apurando”.

Para ele, as redes sociais “têm essa possibilidade de usar uma plataforma que é uma extensão, que dá para você produzir esse conteúdo extra, conectando pessoas com perspectivas diferentes. Os jornalistas entenderam que a rede social é uma forma de estender seu trabalho, perceberam que eles reúnem um nicho de pessoas que buscam um conteúdo que muitas vezes o profissional não pode produzir no seu veículo. Acho que isso é muito legal”.

O setorista palmeirense, Gabriel Amorim, conta que os jornalistas do ramo procuram criar conteúdos em conjunto, como lives e bate-papos. “Essa coisa de ter jogo todo dia tem um lado ruim para o futebol, para qualidade do jogo, chega até a ser desumano. Mas, por outro lado, é bom porque sempre tem conteúdo novo para a gente falar. Vamos criando meios para ir diversificando nosso trabalho nas redes”, diz.

Setoristas no home office

Apesar das dificuldades do home office, a praticidade e a produtividade desse formato estão em alta para alguns profissionais. Segundo Gabriel, em termos de equipamentos, “qualquer um” poderia fazer o trabalho de setorista: “Você só precisa do celular, do WhatsApp e do telefone para fazer contato com as pessoas do clube. Tendo isso, seu trabalho já está feito, porque o clube também disponibiliza bastante coisa.”

Pedro afirma que, em termos de produtividade, a redação da Gazeta Esportiva ganhou com o home office, além de ter reduzido os gastos. “Eu imagino que seja uma tendência, de forma geral, que algumas empresas entendam que é possível fazer o trabalho bem feito no presencial à distância”, aponta.

“Acho que isso está relacionado com o fato de que, quando você está em casa, tem a falsa sensação que o trabalho é mais tranquilo e que não tem problema seguir trabalhando fora do horário. Cabe uma discussão sobre como o home office pode culminar em um novo tipo de precarização do trabalho. Mas, além disso, acho que, de certa forma, o jornalismo precisou desenvolver um meio de se comunicar por mensagem e por ligação, pois o uso da tecnologia para medir a prática jornalística aumentou consideravelmente”, conta Pedro.

Contudo, também há profissionais que sentem falta do ambiente da redação, como Priscila: “Eu era muito mais produtiva perto das outras pessoas, conseguia acalmar mais a cabeça. Hoje eu acordo, vou para o computador e passo cerca de nove horas nele, só paro para almoçar, isso quando dá, porque notícia não tem hora.”

“No futuro, eu não tenho certeza como vai ser. Ao mesmo tempo que o home office parece uma tendência dos próximos tempos, se tratando de televisão fica difícil. Vejo muitos casos de colegas que já estão garantidos de continuar trabalhando em casa mesmo após a pandemia, mas são casos de empresas que abriram mão do local físico e a TV não pode fazer isso, ela precisa do estúdio”, comenta a jornalista.

Editado por Julia Queiroz e Nathalia Jesus.

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