Omissão, silêncio e impunidade: entenda os casos de assédio na liga de futebol feminino norte-americana - Revista Esquinas

Omissão, silêncio e impunidade: entenda os casos de assédio na liga de futebol feminino norte-americana

Por Maria Paula Azevedo e Nicolas Jacomelli : outubro 21, 2022

Foto: Chris Leipelt/Unsplash

Investigação liderada pela ex-procuradora geral dos EUA revelou diversos casos de assédio contra atletas entre 2015 e 2021

O histórico de casos de abuso dentro da National Women’s Soccer League (NWSL), uma das maiores ligas de futebol feminino do mundo, que conta com estrelas como Marta, Megan Rapinoe e Alex Morgan, foi exposto ao público como nunca antes em outubro de 2021. No último dia 3 de outubro, uma investigação independente, liderada pela ex-vice-procuradora geral dos EUA, revelou diversos casos de abuso sexual na principal liga de futebol feminino do país.

Sally Yates liderou um longo inquérito, em nome da Federação de Futebol dos Estados Unidos (USSF), para apurar as denúncias levantadas pelo jornal The Athletic no ano passado. O documento com mais de 172 páginas contou com mais de 200 pessoas, incluindo depoimentos de mais de 100 jogadoras, além de técnicos, donos de clubes, membros da administração e de comissões técnicas de 11 clubes diferentes.

Abuso e negligência dentro da NWSL

A investigação também descobriu que muitos treinadores, incluindo alguns que não haviam sido expostos ao público até o momento, foram acusados de abuso sexual. Esses treinadores utilizavam de técnicas de treinamento viciosas como “discursos implacáveis e degradantes; manipulação que era sobre poder, não para melhorar o desempenho; e retaliação contra aqueles que tentaram se apresentar”, expôs Yates. Além da investigação já divulgada, um outro inquérito está em andamento a pedido da liga e a associação de jogadoras, a NWSL Players Association.

Dentre os acusados, os principais nomes são os ex-treinadores Paul Riley, Rory Dames e Christy Holly. Em seu relatório, Yates contou a situação vivida pelas atletas:

“As jogadoras descreveram um padrão de comentários sexualmente carregados, avanços sexuais indesejados e toques sexuais e relações sexuais coercitivas.”

Além disso, o relatório, divulgado em parceria com o escritório King & Spaulding, fala a respeito da falta de colaboração de três equipes na investigação, sendo eles Portland Thorns, Chicago Red Stars e Racing Louisville. No caso da equipe de Louisville, colaboradores foram impedidos de conversar com as investigadoras, e Yates ainda contou que o time de Portland “interferiu nosso acesso às vítimas” e “levantou argumentos legais ilusórios na tentativa de impedir nosso uso de documentos relevantes”. As dificuldades também seguiram a mesma linha em Chicago onde a equipe “atrasou desnecessariamente a produção de documentos relevantes ao longo de quase nove meses”, segundo a ex-vice-procuradora.

A maioria das equipes não tinha oficiais de Recursos Humanos e ninguém na Liga ou na USSF era responsável pela segurança dos jogadores. É importante ressaltar que, até o outono de 2021, nem a Liga nem as equipes tinham linhas de denúncia independentes e anônimas, ressaltando a mensagem de que reclamações ou preocupações não eram bem-vindas.

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A investigação ainda destacou a impunidade dos acusados ao longo dos anos. “Os que sabiam do que estava acontecendo falharam repetidamente com as jogadoras, pois não puniram os abusadores. Essa investigação revelou uma liga em que abuso verbal e emocional e má conduta sexual se tornaram sistêmicos, abrangendo várias equipes, treinadores e vítimas” afirma Yates em seu relatório. “Como resultado, treinadores abusivos passaram de equipe para equipe, lavados por comunicados de imprensa agradecendo-lhes por seu serviço e referências positivas de equipes que minimizaram ou até esconderam má conduta”.

Medidas para o futuro da NWSL

Agora muitos se questionam a respeito das próximas medidas tomadas pela federação, e na prática, a USSF tem sim o poder de revogar licenças de treinadores, porém punições mais duras ficam a cargo da NWSL. Após a divulgação do relatório, a USFF destacou medidas que serão tomadas como: estabelecer um escritório de segurança do participante para supervisionar as políticas de conduta e os mecanismos de denúncia; publicar registros do SafeSport para identificar publicamente indivíduos no futebol que foram disciplinados, suspensos ou banidos; obrigar um padrão mínimo uniforme para verificações de antecedentes consistentes com os padrões do Comitê Olímpico do país.

Na semana passada, a comissária da NWSL, Jessica Berman, disse que não tinha um plano firme para abordar as descobertas deste relatório, pois não sabia quais recomendações sistêmicas seriam feitas. “A liga quase certamente responderá publicamente ao relatório, mas muitas das decisões finais sobre como abordar as recomendações podem esperar até que a investigação conjunta também seja concluída”, disse Berman.

Três das principais jogadoras citadas no relatório, as mesmas que compartilharam suas histórias de abuso em de outubro de 2021, Sinead Farrelly, Mana Shim e Erin Simon, se pronunciaram no dia 10 de outubro clamando por responsabilidade por parte dos envolvidos. “Os donos que conduziram uma cultura de desrespeito, que são cúmplices em abusar de suas próprias jogadoras, não têm lugar nesta liga e devem ser removidos da governança imediatamente.”

“Há muitos atletas que ainda sofrem em silêncio porque têm medo de que ninguém os ajude ou nos ouça. Eu sei porque era assim que eu me sentia”, afirmou Simon.

Eleita melhor jogadora do mundo em 2019, Megan Rapinoe, que joga atualmente na NWSL pelo OL Reign, falou sobre os proprietários das equipes Portland Thorns e Chicago Red Stars. “Não acho que Merritt Paulson seja capaz de ser o dono desse time. Não acho que Arnim seja o capaz de ser o dono de Chicago, precisamos ver essas pessoas indo embora”, afirma a atleta.

Durante uma coletiva de imprensa antes dos amistosos da seleção americana contra a seleção inglesa, a zagueira e atual capitã Becky Sauerbrunn afirmou que qualquer um que ainda esteja na liga e contribuiu para a construção de um ambiente abusivo precisa ser removido. “Por muito tempo, sempre recaiu sobre as jogadoras exigir mudanças, e isso é porque as pessoas em posições de autoridade e de tomada de decisão falharam repetidamente em nos proteger e falharam em responsabilizar a si mesmos e uns aos outros”, disse Sauerbrunn, em Londres. “E o que e quem você está realmente protegendo e quais valores você está defendendo? Você falhou em sua administração”, finaliza.

Editado por Anna Casiraghi

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