Notre-Dame está lá, vigiando e orando por Paris
Em uma aula de História da Arte, ouvi do professor que museus eram uma espécie de igreja, pois há algo de sagrado neles como nos templos religiosos. A Notre-Dame é os dois. Um templo para os católicos e um museu para quem ama arte e história. É o homem transcendendo seu espírito pela arte. Pela igreja há senhoras fazendo suas orações, estudantes que desenham e admiram partes de sua arquitetura e turistas fascinados. A catedral encantou e se tornou sagrada para todos. Mas ontem, as gárgulas não conseguiram cumprir sua função de afastar o mal da igreja, e o fogo devastou a senhora de Paris.
O local por séculos encantou parisienses e turistas, inclusive já se safou da destruição no passado. “Ainda hoje, a igreja de Notre-Dame de Paris continua sendo um sublime e majestoso monumento”, escreve o francês Victor Hugo em O Corcunda de Notre-Dame. No romance, a catedral serve como o cenário da história de Quasímodo e Esmeralda, mas ela é na verdade a principal razão pela qual o autor escreveu o livro.
Durante o século XIX na França, a arte gótica não era mais apreciada e a catedral sofria com o descaso, ao ponto de as autoridades pensarem em demoli-la. O escritor escreveu então a obra como uma forma de chamar a atenção dos parisienses para o monumento. E deu certo. Os boatos de que a catedral era habitada pelos fantasmas dos personagens da obra fizeram com que a reabilitação do local entrasse em pauta e foi aprovada uma lei para a sua restauração.
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A fascinação de Victor Hugo pela igreja é compreendida ao vê-la mesmo antes de chegar a Île de la Cité, onde está localizada. Sua estrutura majestosa e imponente pode ser vista ainda de longe em uma caminhada à beira do Sena ou dentro dos barcos no rio. As gárgulas mal-encaradas, juntas às estátuas e torres que apontam para o céu do lado de fora do monumento, mostram sua solenidade. Do lado de dentro, sua arquitetura transcende qualquer religião. Os pilares altos fazem nos sentirmos pequenos. A luz do sol batendo nos vitrais faz com que raios coloridas dancem pelas suas paredes, hipnotizando os visitantes. O cheiro de parafina e incenso impregnam a enorme igreja em forma de cruz. E claro, o badalar dos sinos cria a sinestesia que inebria e emociona.
Acompanhando a cobertura ao vivo de uma TV francesa, a repórter pergunta a uma mulher por que ela estava ali, à 1h da manhã, acompanhando o trabalho dos bombeiros. “Porque morando aqui é como se a catedral fosse uma amiga que eu visse todos os dias”, responde. Na última vez que visitei Île de la Cité, há exatamente um mês, entendi o que a mulher disse. Localizada no quilômetro zero de Paris, ela está no coração da cidade. Nos finais de semana seu entorno fica lotado de moradores e turistas. Seja nos bares em volta que possibilitam uma refeição admirando sua beleza, os corais ensaiando nos jardins, os casais que fazem piquenique à beira do Sena olhando para ela. Notre-Dame está lá, como a Torre Eiffel, vigiando e orando por Paris.
Enquanto estava em chamas, foi a vez dos parisienses orarem por ela, assistindo em lágrimas e rezando para que o fogo cessasse. Ver impotente a amiga da cidade luz queimar dói. Talvez pela sua sacralidade que nos deixa tão pequenos, esquecemos que até ela pode sucumbir. Mas, em seus 850 anos de história, ela já passou por muito: sobreviveu à Revolução Francesa, à invasão nazista, a sua própria demolição com a ajuda de seu amigo Victor Hugo.
No incêndio, o teto do século XIII se foi, junto à famosa flecha. Mas suas rosáceas e itens valiosos de arte foram salvos, ninguém se feriu. Ontem as redes se encheram com uma cena do filme Antes do Pôr do Sol, em que uma personagem diz que “Notre-Dame não vai mais existir um dia”. Pode ser que este dia chegue, mas ainda não chegou. O coração de Paris está machucado e precisa de urgente atenção, mas está em pé e continuará vigiando sua cidade por muito tempo.