Ari Vicentini, docente de ética jornalística, diz que informe publicitário prejudica credibilidade dos veículos. A análise faz parte do “Observatório da Pandemia” da Cásper Líbero
Alguns dos principais jornais do país publicaram na última terça-feira (23) um anúncio financiado pelo grupo “Médicos pela Vida”. O informe publicitário afirma existir um suposto “tratamento precoce” contra a covid, que incluiria medicamentos como hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina e doxiciclina. De acordo com as evidências científicas disponíveis até o momento, trata-se de informação falsa. Entidades como a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmam não existir tratamento precoce contra o novo coronavírus. Para Ari Vicentini, professor de ética jornalística da Faculdade Cásper Líbero, a publicação em espaço publicitário de jornais como Folha de S. Paulo e O Globo é um equívoco. Descontextualiza a discussão que deveria se dar em âmbito científico e pode prejudicar a credibilidade jornalística dos veículos.
Analisando a publicação na Folha de S. Paulo, Vicentini pontua que o jornal não é obrigado a aceitar publicidade de qualquer espécie. Ao concordar em veicular o manifesto do suposto tratamento precoce em troca de recursos financeiros, atua contra seu próprio trabalho. “Eu, Folha, combato a cloroquina o dia inteiro. No entanto, quando me pagam, eu deixo que o debate sobre a cloroquina venha a público fora de contexto. É no âmbito científico em que as evidências sobre tratamentos podem e devem ser debatidas”, afirma.
Segundo ele, não é possível isentar os jornais por se tratar de um anúncio pago — em tese, sem ingerência da redação. “A publicidade paga em jornais não é o local ideal para discutir sobre tratamento contra a covid. Fazendo isso, a Folha cede espaço para a discussão no lugar e momento errado. A propaganda usa da credibilidade desses jornais contra aquilo que eles defendem”, argumenta.
Veja mais em ESQUINAS
+ Terceira temporada do Papo de Esquina explica o que envolve a produção de uma vacina
+ Coronavírus no Brasil: a defasagem do combate à doença e os diferentes tipos de teste
A Lupa, agência especializada em fact-checking, verificou frases do manifesto e chegou à conclusão de que informações falsas foram usadas pela organização de médicos que assina o informativo.
Não há evidências na literatura médica que comprovem a eficácia do suposto tratamento precoce ou de medicamentos como analgésicos, anti-inflamatórios, anticoagulantes e antibióticos contra o novo coronavírus. é errado afirmar que “dentre as abordagens disponíveis na literatura médica para a covid-19, existe o chamado ‘tratamento precoce’”, ou “(…) utilizando uma combinação de drogas, visando reduzir o número de pacientes que progridem para fases mais graves da doença (…)”, como publicado no manifesto.
Ao veicular o informe pago, as publicações podem ter apostado que o leitor saberia diferenciar o conteúdo editorial da publicidade. Vicentini afirma que a estratégia é imprudente. “Neste momento de pandemia, é arriscado apostar no discernimento do leitor. A capacidade de julgamento sofre enorme pressão pela descoberta de um tratamento”, afirma.
Além de terem sido publicados na Folha de S. Paulo e em O Globo, os anúncios também saíram em jornais regionais como Estado de Minas, Jornal do Commercio, Zero Hora, Correio Braziliense e O Povo.
A ação causou indignação nas redes sociais. O perfil Sleeping Giants, que atua na denúncia do financiamento à desinformação e ao discurso de ódio, acusou as publicações de estarem lucrando com fake news:
📰Associação de médicos paga a publicação de manifesto com fake news sobre tratamento precoce nos jornais @JornalOGlobo e @folha.
Inacreditável grandes jornais lucrarem com desinformação. O que vocês acham disso?🤔 pic.twitter.com/f7Cnny3lR3
— Sleeping Giants Brasil (@slpng_giants_pt) February 23, 2021
Não é a primeira vez em que a associação de médicos ganha notoriedade. Em dezembro de 2020, seus coordenadores, Antônio Jordão de Oliveira Neto e Cristiana Altino Almeida, enviaram em conjunto com outros profissionais da área da saúde uma carta à Procuradoria-Geral da República (PGR) argumentando contra a obrigatoriedade da vacinação contra o coronavírus.
A ideia de usar a cloroquina e demais drogas no combate à covid-19 se popularizou no Brasil com a insistente tentativa do presidente Jair Bolsonaro de indicar o suposto tratamento precoce para a doença, mesmo após as pesquisas atestarem sua ineficácia. De modo geral, a imprensa tem sido a principal fonte de informação de qualidade contra a onda de desinformação propagada pelo Governo Federal.
Em reportagem publicada no final da terça (23), a Folha de S. Paulo menciona a publicação do manifesto em vários jornais, mas não se posiciona editorialmente sobre a veiculação.