As sessões do Tribunal Permanente dos Povos ocorreram nas últimas terça (24) e quarta-feira (25) simultaneamente de forma presencial na Faculdade de Direito da USP (São Paulo) e on-line em Roma
“O governo se tornou mais letal do que a própria pandemia”, foi a denúncia de Maurício Terena, destacada pela antropóloga portuguesa Manuela Carneiro ao fazer o fechamento da 50ª sessão do Tribunal Permanente dos Povos. Terena é assessor jurídico do Observatório Sistema de Justiça Criminal e Povos Indígenas (Apib) e fez parte da acusação dos atos do Presidente da República Jair Messias Bolsonaro no julgamento.
A 50ª sessão do Tribunal Permanente dos Povos
O Tribunal Permanente dos Povos é um órgão internacional com sede em Roma, na Itália, que tem como papel o julgamento de violações de direitos humanos. Sua 50ª sessão foi finalizada nesta quarta-feira (25), após duas manhãs de debates de forma presencial na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo, e virtualmente em Roma.
O júri, composto de diversos intelectuais renomados de todo o mundo, se reuniu de maneira online para julgar denúncias de crimes contra a humanidade no decorrer da pandemia da covid-19 e de crime de genocídio de povos indígenas praticadas pelo presidente da república Jair Messias Bolsonaro (PL).
A Advocacia Geral da União, ao ser convocada para a realização da defesa do governo brasileiro, negou sua presença tendo como justificativa para tal a não previsão do Tribunal Permanente dos Povos como um órgão julgador nos tratados internacionais aos quais o país aderiu, como o Tratado de Roma. Em seu discurso de fechamento da sessão, Paulo Sérgio Pinheiro, ex-Secretário de Direitos Humanos e membro-fundador da Comissão Arns, declara que “não é surpresa alguma que esta cadeira está vergonhosamente vazia”, ao fazer referência ao assento que deveria ser ocupado por um representante do governo federal.
A acusação da prática de crimes contra a humanidade e de genocídio contra as populações indígenas foi levada ao tribunal pela frente pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns em conjunto com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Coalizão Negra por Direitos e a Internacional de Serviços Públicos (PSI). No julgamento, foram advogados da acusação Eloísa Machado, professora da FGV-SP e assessora jurídica da Comissão Arns, e Maurício Terena.
A impunidade das cortes
Paulo Sérgio Pinheiro em entrevista à imprensa, explicou que o Tribunal Permanente dos Povos não tem status jurídico para punir ou restaurar concretamente as violações constatadas. Entretanto, o órgão possui força política para influenciar a opinião da comunidade internacional, da sociedade civil e de cortes judiciais nacionais e internacionais em suas decisões futuras. “O importante é a tomada de consciência do que tem acontecido”.
A sentença do colegiado de jurados deve sair por volta do mês de julho de 2022 de acordo com a estimativa do coordenador, decisão a qual tem como propósito ir contra a impunidade das políticas do governo federal. Esta decisão, segundo ele, de forma alguma tem como intenção gerar impactos na corrida eleitoral, tendo como foco único a reprovação das violações realizadas pelo atual presidente Jair Bolsonaro (PL) – que também é candidato à reeleição.
No primeiro dia de julgamento, o Senador Humberto Costa (PT-PE), que é presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado e foi membro da CPI da Pandemia realizada no Congresso em 2021, foi chamado à sessão como testemunha das violações de direitos humanos de Bolsonaro durante a pandemia. O legislador comunicou que o relatório produzido por Renan Calheiros (MDB-AL) foi enviado à apreciação do Tribunal Penal Internacional, do qual o Congresso não obteve resposta.
Seguindo essa mesma lógica, o relatório da CPI que indicou diversas ações indevidas do governo federal, em especial na compra de vacinas contra a covid-19, também não levou as denúncias contra o presidente nas instâncias nacionais. A advogada Eloísa Machado apontou a omissão da Procuradoria Geral da República, em seu papel de produzir denúncias contra o presidente a partir do relatório produzido pela CPI, como responsável pela impunidade aos agentes causadores das mortes em decorrência da pandemia.
Os crimes contra a humanidade na pandemia
Na primeira manhã da sessão do Tribunal Permanente dos Povos, a acusação interpôs à análise do júri os crimes contra a humanidade cometidos por Jair Bolsonaro em suas ações durante a pandemia. De acordo com a argumentação da advogada Eloísa Machado, representante da acusação, o presidente da república teria deliberadamente instaurado uma política de contaminação sem freios – conhecida como imunidade de rebanho –, realizado o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) e ido contra os esforços de combate da pandemia que consistia na geração de barreiras sanitárias e no funcionamento efetivo do Plano Nacional de Imunização contra a covid-19.
Valdirlei Castagna, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), testemunhou que a política negacionista do governo federal de Jair Bolsonaro foi um dos fatores que preocupou enormemente a todos os trabalhadores de saúde e, mais do que isso: que desencadeou diretamente nos números excessivos de mortes no Brasil. Em consonância com tal fala, Deisy Ventura – professora da Faculdade de Saúde Pública da USP – defendeu que não há dúvidas a respeito do aspecto ativo do governo brasileiro em propagar o vírus, uma vez que produziram-se normas, processos judiciais e discursos de estímulo ao contágio deliberado. Ela utilizou como exemplo para tal o estímulo à reabertura desenfreada da economia em períodos no qual a situação epidemiológica exigia, segundo estudos científicos, a permanência do distanciamento social.
Junto ao negacionismo na colocação de entraves ao combate da pandemia estava também a precarização da saúde brasileira, mais especificamente o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS). Benedito Augusto, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social (CNTSS), revelou que o diálogo dos trabalhadores de saúde teve seu fim com tomada de posse do atual governo por conta do desmantelamento da mesa de diálogo permanente com o SUS mesmo antes do início da pandemia. Além disso, segundo ele, com a instalação de uma calamidade pública de saúde, faltaram insumos, medicamentos, equipamentos de proteção pessoal, oxigênio medicinal, leitos hospitalares e de UTI, entre vários outros recursos que eram imprescindíveis ao combate da covid-19 pelos profissionais da saúde.
No que lhe diz respeito, a presidente da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE), Shirley Marshal, disse que os profissionais de saúde tiveram seus direitos negados com o advento da pandemia, como a impossibilidade de tirar licenças por adoecimento mental ou o não fornecimento de equipamentos de proteção pessoal adequados ao ambiente hospitalar. Isso se deve, argumentou ela, a uma falta de coordenação do Ministério da Saúde para a geração de protocolos unificados e com base na ciência ao combate do vírus, além do estabelecimento de entraves às ações judiciais propostas com o objetivo de garantia a esses trabalhadores.
Em adição, Shirley destacou os ataques aos especialistas da saúde que rebatem as notícias falsas a respeito da pandemia por meio do “gabinete do ódio” no governo federal como outro objeto de preocupação deles. De forma semelhante, Benedito relatou que “com o negacionismo do Bolsonaro, com a ida dele à rua dizendo que não havia uma pandemia, que aquilo era um fricote, nós [os profissionais de saúde] começamos a ser marginalizados e atacados dentro da sociedade”.
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O genocídio contra povos indígenas
No segundo dia de julgamento, a denúncia analisada pelo Tribunal Permanente dos Povos foi o genocídio contra povos indígenas no decorrer do governo de Jair Bolsonaro. A partir da argumentação da acusação, a pandemia teria sido um dos meios utilizados pelo Planalto para atingir a população indígena seja pelo estímulo à disseminação do vírus ou seja pela aprovação de leis e de medidas que ferem os direitos dessas populações, como o direito à proteção de suas terras demarcadas.
Ao defender a criminalização de tais ações de Bolsonaro, Eloísa Machado explicou para ESQUINAS que “o crime de genocídio não exige que você tenha alguém morto”, posição que está em consonância àquela adotada pelo Tribunal Penal Internacional. Mas sim, a atribuição de tal crime a algum agente exige que ele possua uma “intenção específica em destruir um povo em razão de sua religião, etnia, raça ou origem e que esta seja materializada em ações concretas”. Consequentemente, a acusação em pauta buscou demonstrar a existência de uma política anti-indígena em curso – ou seja, a intencionalidade do governo de Jair Bolsonaro – para dizimar as populações indígenas do país.
No tocante à transmissão do vírus da covid-19, Lindomar Terena, representante da terra indígena de Cachoeirinha, contou que tiveram que lidar por conta própria com a criação de barreiras sanitárias em suas comunidades pela ausência de uma coordenação ou de plano de combate à pandemia nas populações indígenas por parte do governo federal. De maneira similar, Auricélia Fonseca, coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA), relatou que ficou a cargo dos próprios indígenas a distribuição dos poucos insumos fornecidos pelo Estado para diminuir o impacto da pandemia nas condições básicas de vida dessas pessoas.
Em consequência desse vácuo de orientações do Planalto e a necessidade de atuação dos próprios indígenas na resistência ao vírus, agravaram-se as vulnerabilidades social e epidemiológica pelas quais essas pessoas já são acometidas. Por conta dessa atuação indígena, muitos dos indígenas que faleceram foram aqueles que tentavam proteger os seus povos da doença que os acometeu, segundo Auricélia. Uma das pessoas que faleceu em decorrência da covid-19 no Pará foi o avô da líder indígena – antepassado cujo espírito ela afirmou que estava consigo durante a luta pela resistência da sua comunidade contra a doença.
“Enquanto fazíamos campanhas para o nosso povo aderir à vacina, o Bolsonaro autorizava a entrada de evangélicos em nosso território. Vivemos um cenário de guerra de discursos na pandemia” reiterou Auricélia. Também durante esse período, de acordo com o advogado Maurício Terena, o governo “passava a boiada” – expressão cunhada pelo próprio ex-Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles – ao promulgar decretos de incentivo à mineração, ao garimpo e ao desmatamento em terras indígenas enquanto a atenção da sociedade civil estava na calamidade pública gerada pela pandemia. Por isso, os representantes indígenas recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF), com a uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 709, para tentar cessar as inúmeras violações aos seus direitos.
O histórico do Tribunal Permanente dos Povos
Historicamente, o Tribunal Permanente dos Povos tem sua origem inspirada nos Tribunais de Russell, que foram criados pelo filósofo Bertrand Russell para julgar as violações de direitos humanos pelos Estados Unidos da América no decorrer da Guerra do Vietnã. Estes já tiveram como mediadores personalidades intelectuais como Jean Paul-Sartre e Simone De Beauvoir.
Por sua vez, o Tribunal Permanente dos Povos foi constituído por Lélio Basso em 1979, na Itália, como um instrumento permanente no contexto internacional de afirmação dos direitos dos povos, principalmente na garantia aos direitos humanos. Cinquenta sessões que analisaram violações sistemáticas de direitos humanos já foram realizadas, sendo que o Brasil já foi objeto de julgamento em duas ocasiões: o desmatamento no Cerrado brasileiro (2019) e as violações aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes no país (1999).
As denúncias são levadas ao tribunal por membros da sociedade civil e suas sessões contam com a participação e o julgamento feito por pessoas desse mesmo grupo como forma de reafirmar o povo como um sujeito de direitos. A 50ª Sessão do Tribunal Permanente dos Povos foi aberta ao público e contou com a participação de centenas de pessoas, entre elas juristas, advogados, jornalistas e estudantes universitários.
Helena Simões, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto e estudante da Faculdade de Direito da USP afirmou para EQUINAS que, “enquanto estudantes, estar aqui [assistindo ao julgamento] não só é uma forma da gente sempre se lembrar que na prática jurídica, nos estudos e nas nossas atuações a gente tem que ter esse pensamento crítico, mas também relembrar a gente de não aceitar as coisas, as instituições e as estruturas das formas como elas são colocadas”.