Intelectual e ex-escravizado: quem foi Luiz Gama e por que ele não pode ser esquecido? - Revista Esquinas

Intelectual e ex-escravizado: quem foi Luiz Gama e por que ele não pode ser esquecido?

Por Ana Guercio, Beatriz Calado, Giovanna Ferraz e Mariana Garcia  : junho 21, 2025

Busto do jornalista e abolicionista Luiz Gama, no Largo do Arouche/ Foto: Mike Peel/Wikimedia Commons

“Ninguém teria levantado essa voz que ele levantou em defesa dos escravizados”, diz doutora e professora da UNIFESP, sobre Luiz Gama.

Mais que uma figura emblemática na luta pela liberdade no Brasil do século XIX, Luiz Gama era um homem de diversas facetas e profissões. Natural de Salvador (BA), nasceu, em 21 de junho de 1830, o abolicionista, advogado, jornalista, poeta, escrivão, entre tantas outras personalidades que adquiriu por um fim maior. Seu salário? A liberdade e direitos daqueles pelos quais lutava. Conheça peça-chave no movimento abolicionista brasileiro, a figura histórica ainda não recebe o devido reconhecimento na mídia e entre os jovens.

Quem foi Luiz Gama?

Gama

Foto do advogado e abolicionista Luiz Gama/ Foto: Portal de literatura afro brasileira da UFMG
Foto: Portal de literatura afro brasileira da UFMG

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu no lar onde tudo parecia propício a dar errado. Filho de um homem branco rico (cujo nome ele jamais citou) e de uma mulher negra revolucionária (Luiza Mahin), foi vendido ilegalmente pelo próprio pai para quitar dívidas de jogo, quando ainda era uma criança. No entanto, apesar de carregar as marcas do trauma da escravidão e do abandono durante a infância, aos 17 anos, ele descobriu que sua situação era ilegal, pois sua mãe já era uma escrava livre.

Depois de ser vendido a um senhor do Rio de Janeiro e em seguida levado para o interior de São Paulo, em 1848, ele foge para a capital e consegue provar sua condição de homem livre. A conquista de sua alforria na justiça é notável em um contexto social marcado pela constante perseguição a pessoas negras.

Mesmo enquanto escravo, Gama descobriu-se um autodidata, aprendendo a ler e escrever por onde passava. Adquiriu amplo conhecimento jurídico ao trabalhar como escrevente na Secretaria de Polícia e frequentar as aulas, como ouvinte, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Sem possuir diploma formal, tornou-se um advogado prático e respeitado, destacando-se na defesa da liberdade de mais de 500 pessoas escravizadas. Baseando-se na legislação da época, como a Lei Eusébio de Queirós de 1850, a qual proibia o tráfico negreiro, utilizou os recursos jurídicos e sua oratória afiada para questionar e derrubar práticas ilegais relacionadas à escravidão vigente.

Além de sua atuação no campo jurídico, foi um importante jornalista, escritor e defensor da educação pública e obrigatória, utilizando seus textos para denunciar as atrocidades do sistema escravista e promover a causa abolicionista e republicana. Luiz Gama faleceu em 24 de agosto de 1882, antes de ver a abolição da escravidão e a Proclamação da República, mas, por tudo isso, seu legado permanece fundamental na história dos direitos humanos e na luta contra as desigualdades no Brasil.

“Sem reis, sem escravos”: o advogado dos cativos

“Ninguém teria levantado essa voz que ele levantou em defesa dos escravizados. O Luiz Gama nasceu lá na Bahia e o destino quis que ele acabasse ficando em São Paulo, e foi a pessoa certa, no lugar certo, e que teve essa persistência, né?”

É o que diz a doutora e professora da UNIFESP de 67 anos, Ligia Ferreira, referência nos estudos sobre a trajetória de Luiz Gama.

Após se tornar um homem livre, Gama participou ativamente do movimento republicano paulista, articulando a defesa de um Brasil mais justo e democrático. Tornou-se uma pessoa influente num lugar onde nunca se esperava que um negro pudesse ocupar. “Em 1869, em um dos seus artigos, ele escreve que tem um sonho supremo, a terra do Cruzeiro: uma referência ao Brasil sem reis e sem escravos. Ele não é aquele que abraça uma ideia ou adere a um partido. Ele foi um formador da ideia e do conceito da república”, a professora comenta sobre a relação de Gama com o sonho de uma república que mudaria o cenário brasileiro e ainda complementa sobre a jornada com a política que ele trilhou:

“Ele até usa uma expressão muito bonita, numa carta escrevendo para um amigo, ele diz: “A política é um plano inclinado, um plano inclinado da minha vida”. Ou seja, existe um plano inclinado, mas você vai em linha reta e nunca o deixa”.

Falar de Luiz Gama é trazer à tona os preconceitos sociais da época, contra os quais o homem lutou em vida e ainda parece lutar, em outro século, mesmo após sua morte. A advogada de 33 anos, Thaís Prado Ribeiro, pós-graduada em liderança e desenvolvimento humano, cujo projeto de TCC foi sobre Luiz Gama, em entrevista, contou como foi sua experiência ao realizar a pesquisa e como essa figura histórica, que considera um dos precursores do abolicionismo brasileiro, tem impacto sua vida profissional e pessoal:

“É muito bom ler as obras dele, porque parece que te revigora. Ele tem um jeito único de escrever. Enquanto a lei não for igual para todo mundo, a gente não tem que descansar. E eu estou nessa fileira justamente pela inspiração do Luiz Gama”.

Segundo Thaís, os preconceitos e práticas racistas que ocorriam na época eram previstos por lei, a qual apenas reforçava o status quo do afastamento de pessoas negras como cidadãs. No Brasil, a negação desses direitos fortalecia a construção de uma estrutura social baseada na escravidão.

O debate levantado pela advogada mostra que as questões raciais nos tempos de Gama são, em parte, diferentes dos que existem hoje, visto que ele não buscava somente diminuir preconceitos, mas combater a estrutura que os causava — a escravocrata. “A grandeza dele reside nesse sentido de que, no momento em que ninguém falava, ele falava. Quando ninguém questionava por que um juiz não estava seguindo a lei, ele entrava como parte no processo, questionava, até mesmo sofrendo ameaça de morte”, afirma Prado.

Mais do que contribuir para o abolicionismo, Gama era a favor de um sistema em que todos aqueles que eram considerados escravos tivessem um suporte do Estado para ter uma vivência digna. As leis começavam a auxiliar nesse sentido, porém, era preciso que houvesse advogados dispostos a lutar pela liberdade desses povos, especialmente aqueles que oferecessem serviços gratuitos, através da conhecida “Advocacia Pro Bono”, exatamente como Gama fazia.

“Só em 2016, o Luiz Gama recebeu da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Federal uma homenagem por ter sido reconhecido como um símbolo dessa advocacia que se fazia gratuitamente, porque durante algum tempo não era nem possível fazer isso aqui no Brasil”, comenta Ligia a respeito do título de advogado honorário que ele recebeu por seus serviços.

Essa ação de Gama, para a advogada Prado, resgata a esperança de lutar pela justiça, liberdade e educação que, por meio dos direitos que conhecemos hoje, são capazes de serem alcançados: “É realmente utilizar o direito com um fim, que seria o combate de desigualdades. A utilização do direito como um meio de redução de problemas sociais e não criação”.

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A educação como uma ferramenta de libertação

Em todos os seus atos, Luiz Gama almejava um Brasil mais justo. Em consequência, um de seus ideais era a democratização do acesso à educação, uma vez que a via como a principal ferramenta de libertação.

Segundo a ativista e socio-educadora de 47 anos, Ednusa Ribeiro, Gama é uma figura extremamente necessária para a luta pelo acesso à educação. Sua determinação de questionar o sistema governamental e as leis da época, de forma que conseguisse garantir, ou ao menos, propagar seus ideais políticos, transformou-o em uma figura que não pode ser ignorada. E que se tornou a personalidade ideal para combater a ignorância da sociedade atual.

“Luiz Gama era um questionador. Eu sei que a ignorância às vezes é o melhor remédio, mas será que até quando? Então, por que a gente não tem acesso? Por que ainda tem gente que tem acesso e não tem? Tem um sistema fazendo com que a gente fique assim”, completa Ednusa. 

Em sua obra “Democracia”, entre 1866 e 1869, o advogado escreveu uma série de artigos defendendo a liberdade de ensino, a instrução gratuita e obrigatória, especialmente no nível primário. Luiz acreditava que a educação era um direito irrecusável para crianças e cidadãos, e era um dever do Estado garantir que estes fossem cumpridos, propondo um sistema educacional abrangente. Para ele, o acesso à educação e à informação eram as soluções para um progresso social e para a liberdade individual.

Ademais, para a educadora, trazer a figura histórica de Gama, em específico para as faculdades de Direito, é uma forma de resistência às leis que, em suas palavras, são extremamente embranquecidas. Como mulher negra e especialista em gêneros e etnias, ela reforça que questionar as leis brancas é trazer a personalidade do grande abolicionista aos dias atuais em meio a um país que não questiona criticamente o racismo estrutural na sociedade:

“Eu gosto de trazer o Luiz Gama para a vida real, na dor que eu sinto diariamente. Quando a gente traz essa personalidade tão potente para a realidade, quando a gente o traz para a faculdade e para fora dela, eu mostro a possibilidade real de pessoas que fazem a diferença na vida de outras pessoas”.

Ao recordar-se da lei n.1 de 1837, que proibia pessoas pretas de frequentarem as escolas, a socioeducadora Ednusa corrobora a importância da atuação de Gama nas instituições de ensino:

“Ainda temos resquícios daquela época e temos muitas coisas a melhorar”.

O satírico “Diabo Coxo”

Tendo em vista a questão educacional do século passado, como muitas pessoas não eram alfabetizadas, Luiz Gama e o caricaturista italiano Ângelo Agostini fundaram, em 1864, um jornal composto por charges. Eles foram precursores na criação de um dos primeiros jornais ilustrados de São Paulo que não foi pensado para a elite exclusivamente, mas que tinha a intenção de atrair até mesmo aqueles que não tinham acesso à educação. Foram publicadas duas séries de 12 números cada uma, circulando entre 1864 e 1865.

Publicado aos domingos, com apenas 8 páginas, 4 de ilustrações e 4 de textos, o veículo se destacou por suas caricaturas afiadas e sátiras sociais, abordando temas como a escravidão, a política e os costumes da sociedade paulista do Segundo Reinado. Segundo pesquisas do professor Antonio Luiz Cagnin, o título do periódico “Diabo Coxo” faz referência a obras literárias europeias do século XVII e XVIII, como El Diablo Cojuelo, de Luís Vélez de Guevara, e Le Diable Boiteux, de Alain-René Lesage. Na história, um diabo preso na garrafa é libertado por um estudante, e, em contrapartida, dá-lhe o poder de ver o interior das casas, revelando os vícios e virtudes das pessoas. A metáfora, adaptada pelos escritores, funcionou como uma forma de satirizar os costumes da sociedade.

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Edição da Edusp reproduz, na íntegra, o semanário O Diabo Coxo, que circulou em São Paulo de 1864 a 1865/ Foto: Marcos Santos – USP Imagens
Foto: Marcos Santos / USP Imagens

Luiz Gama redescobriu o jeito de se comunicar, no primeiro momento ao decidir seu público alvo, aqueles que não conheciam seus direitos e que constantemente eram excluídos e abusados pela elite. Gama acreditava que o acesso à informação era a chave para a liberdade individual, e, mesmo sabendo da educação escassa de seu público leitor, decidiu criar um jornal que integrasse uma linguagem simples e fácil, porém ainda assim intensamente crítica: as charges.

É importante ressaltar que, seu jornal foi um dos primeiros com a intenção de satirizar a elite brasileira da época, contendo charges que ridicularizaram figuras influentes da elite, como barões, e divulgando informações e acontecimentos que eram desconhecidos pelo público, como ataques de violência policial.

Segundo a professora Ferreira, a criatividade do jornalista foi crucial para causar uma revolução na comunicação: “Luiz Gama, como muitos escritores de sua época, vai produzir imagens, ideias e histórias a partir da escrita (…) a gente está falando de um momento em que o imaginário precisa ser construído com uma escrita que era maravilhosa”.

Além dos textos jornalísticos, a funcionária do Arquivo Público do Estado, Ednusa, compartilha que Gama ficou conhecido também por utilizar sua escrita na elaboração dos documentos que os ex-escravos tinham que carregar para que fossem identificados como livres. Conhecido como o trabalho de um amanuense, Luiz descreveu detalhadamente mais de 120 pessoas libertas.

Atualmente, funcionários do Arquivo Público do Estado estão utilizando a tecnologia da Inteligência Artificial para “dar rosto” e criar uma espécie de RG (Registro Geral) digital para essas pessoas com a descrição dos documentos feitos por Gama, para que a memória delas seja preservada, como o exemplo abaixo do próprio Luiz Gama.

Gama

Imagem de documento criado por funcionário do Arquivo Público com IA/ Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

A validação da memória: uma questão de reparação histórica

Para a doutora Ferreira, “É impossível você não estudar o Luiz Gama na história da imprensa, é impossível você estudar a escravidão e as lutas pela liberdade no século XIX sem passar pelo Luiz Gama. É impossível você pensar e estudar a história literária brasileira, especialmente no período romântico, sem ver o lugar daquele que foi o fundador da voz negra na literatura e na cultura”. Contudo, a ausência do conhecimento sobre Luiz Gama na sociedade brasileira — tanto nos currículos escolares quanto pelo pouco acesso que temos a seus materiais históricos — representa um obstáculo.

Um exemplo é o próprio Diabo Coxo que, apesar de ter grande importância para a história da comunicação e ser um verdadeiro símbolo de resistência e luta no país, ainda é pouco conhecido. Essa evidência reflete o racismo estrutural inserido na cultura brasileira que, além de reforçar os ideais de Luiz Gama — sobre a necessidade do acesso à educação ser uma luta constante — ainda ignora a sua representatividade histórica.

“Ele quis ser reconhecido e ser ouvido como negro no campo da literatura através das suas sátiras políticas, sociais e raciais. Ele chama muita atenção ao fato dele ser um escritor negro”, afirma a professora, sobre Gama não esconder suas origens e sua luta pelo reconhecimento do povo negro na cultura.

Em sua atuação como pesquisadora que objetiva preservar a memória e os feitos de Luiz, Ligia Ferreira lançou, dentre suas diversas obras sobre ele, seu último livro Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro.  Lançado em e-book e em papel pela SESC Edições, a autora reúne artigos publicados na imprensa abolicionista de São Paulo e do Rio de Janeiro durante as décadas de 1860 a 1880. Nesse período, Gama atuou na imprensa e nos tribunais contra a permanência de escravizados que deveriam estar protegidos pela Lei do Ventre Livre, assinada em 1831.

Quanto advogada, Thaís reconhece a importância da figura histórica de Gama —  um estudioso dos direitos humanos que utilizava de seus estudos para obter justiça em meio a uma sociedade que não debatia tais questões. Ela ainda diz que ele, enquanto jornalista, escrevia seus textos de forma não só para criar uma agitação social, mas também, para criar um projeto de país que preze pela justiça.

Estudar e relembrar aquele que foi o advogado dos escravos é um começo para a promoção de políticas públicas, especialmente elaboradas por pessoas negras, como uma forma de reparação histórica, para que a própria narrativa de Gama chegue onde deve chegar. “Ele alcançou uma voz que é notável para um homem negro na condição dele, porque é o único dentro da história intelectual do Brasil que foi escravizado” revela Ligia, o que pode ser visto como um impulso para que as pessoas negras da geração atual também ergam suas vozes.

Diante de um país onde, como lembra Ednusa Ribeiro, “O racismo estrutural é tão ardiloso e velado que dificulta as ações, sejam elas individuais ou coletivas, de pessoas pretas”, dar visibilidade à trajetória de Luiz Gama não é apenas um ato de justiça histórica — é um gesto de resistência e transformação. Representações positivas, reais e possíveis têm poder. “Você mostra Luiz Gama para crianças e adolescentes pretos. O que eu faço com essa criança? Eu aumento a autoestima, eu mudo a perspectiva e eu quero mudá-la pensando no sistema.” Ao trazer figuras como ele para a mídia, para a literatura e até para os videogames, como aponta Ednusa, “isso vai reverberar”.

Como exemplifica a ativista, ao fazer um “paradoxo cultural” entre, por exemplo, a presença de atores e cantores negros e a figura histórica de Luiz Gama, é possível criar uma ponte entre a nova geração e os ideais do intelectual, para que ele seja conhecido e reconhecido por ela. “Você sabia que a gente tem a Pequena Sereia preta, mas que a gente também tem um homem preto que ajudava, que escrevia, que editava, que fez um jornal. Você viu como se torna real? Se eu faço esse paradoxo com os dois, eu começo a criar crianças, adolescentes, pessoas mais questionadoras.”

Editado por Giovanna Moretti

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