A alta procura e a crescente degradação ambiental do Monte Everest levaram autoridades locais a modificarem as diretrizes que permitem escalar a maior montanha do mundo
A Mãe do Universo, a Deusa da Terra ou ainda o Rosto do Céu, estes são alguns nomes místicos dados ao Monte Everest. Povos que vivem ao seu redor, como os nepaleses e os tibetanos, por séculos, cultivam relações sagradas e religiosas com a maior montanha do mundo.
Para os Sherpa, por exemplo, etnia que vive no Himalaia, o Everest é reverenciado em rituais que precedem a escalada do pico. Porém, os aventureiros que vêm de longe, tomados pela animação e a adrenalina de conquistar a grandiosa deusa, costumam deixar a cordialidade (ou a boa educação, por assim dizer) de lado. Ao invés disso, deixam detritos e sujeira como uma oferenda pouco requisitada, muito menos bem-vinda, à entidade.
Autoridades locais e internacionais já se preocupam com a quantidade de lixo deixada desde o pé da montanha até o seu cume, a 8.848 metros acima do nível do mar. Estima-se que, junto aos mais de 200 corpos que jazem no ventre frio da Grande-Mãe, 50 toneladas de lixo e três toneladas de excrementos humanos atrapalham o caminho dos desbravadores.
Desde 1953, quando Edmund Hillary e Tenzing Norgay tornaram-se os primeiros aventureiros a chegar ao cume da montanha e retornar da missão de forma bem-sucedida, o pico foi escalado milhares de vezes, e tem se tornado cada vez mais lotado. No ano passado, o Nepal emitiu 478 permissões para alpinistas, um número recorde. A temporada também foi uma das mais mortais. Um total de 19 pessoas foram dadas como mortas ou desaparecidas.
Assim, numa tentativa de conter a carga crescente de aventureiros irresponsáveis, o Departamento de Turismo do Nepal estabeleceu novas diretrizes para escalar o Monte Everest. Agora, os alpinistas que desejarem desafiar a entidade mística terão que limpar suas próprias fezes e levá-las de volta ao acampamento base para descarte, onde os sacos, supostamente, serão “verificados” para assegurar que foram de fato utilizados. Autoridades locais irão fornecer sacos que contêm produtos químicos e pós que solidificam os excrementos e os tornam, em grande parte, inodoros. O que acontece é que, devido às temperaturas extremas, as fezes deixadas no Everest não se degradam completamente, consequentemente, ficam visíveis em rochas e adoecem alguns alpinistas.
Além disso, os montanhistas terão a obrigação de alugar e usar um dispositivo de rastreamento, do tamanho de um pendrive, em suas jornadas. Para isso, o visitante deverá desembolsar cerca de 10 dólares, o equivalente a 50 reais. O intuito é, caso as coisas não saiam conforme planejado pelo aventureiro, reduzir e otimizar o tempo em missões de busca e resgate e, ultimamente, reduzir as fatalidades. As medidas entram em vigor com o início da temporada de escalada da primavera, que vai de março a maio. Esse período tende a ser mais popular entre os desbravadores que buscam usufruir do tempo “ameno”.
Em 2019, imagens mostrando a superlotação no Everest viralizaram, com centenas de alpinistas esperando até 12 horas para escalar, o que estaria exercendo pressão ambiental na montanha. O governo do Nepal já foi criticado por estar emitindo muitas permissões aos visitantes, mas tem relutado em reduzir o número, uma vez que as expedições são grande fonte de receita para o país que conta com poucos recursos financeiros.
Tampouco há indícios que, num futuro próximo, o número de aventureiros deve realmente diminuir, pois explorar o Everest tem se tornado passeio “gourmet”. Se antes o padrão de escalada costumava ser de alpinistas experientes, agora há alpinistas novatos que têm a pretensão de chegar ao cume da montanha. O mais novo “destino turístico” para os espíritos aventureiros (e abastados) conta com instalações de luxo em seu acampamento base, com direito a massagem e entretenimento noturno, além de helicópteros que levam com facilidade os visitantes ao local.
Existem também preocupações de que a atividade humana aumentada no acampamento base da montanha estaria aumentando as condições perigosas já criadas pelo aquecimento global. De acordo com uma pesquisa recente, os glaciares do Everest perderam 2.000 anos de gelo nos últimos 30 anos.
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Que seja de acordo com a máxima da “oferta e demanda” ou em nome da manutenção da montanha, o fato é que conhecer a Mãe do Universo tem ficado cada vez mais caro. Aventurar-se no Monte Everest em 2024 custará entre 150 mil e 800 mil reais, com a média situando-se em torno de 250 mil reais. Tudo isso engloba o custo de apoio (ou seja, o guia de escalada); custo de alimentação e transporte; custo de permissões (apenas para obter a documentação adequada é cerca de 100.000 reais); além do custo de equipamento, custo de tanque de oxigênio, custo do seguro e custo do preparo físico e mental.
O preço salgado, que arde ainda mais com o gelo, justifica-se pelas expedições desastrosas do passado e, por isso, visa garantir que os aventureiros terão as condições e o preparo necessários para chegar ao cume. Em 2024, a expedição de George Mallory – um dos aventureiros que morreu tentando conquistar a deusa – completaria 100 anos. Quando questionado sobre o motivo de querer desbravar o Everest, o britânico respondeu “porque ele está lá”, frase que viria a se tornar um das mais emblemáticas do alpinismo.
Em 1924, Mallory embarcou na sua empreitada da qual ele nunca retornaria. Seu corpo, em grande estado de conservação, só iria ser encontrado 75 anos depois, em 1999, a algumas centenas de metros do topo. Nunca foi confirmado se ele ainda estava subindo ou se, já conquistado o cume, estava voltando; assim, o mistério acerca do “sucesso” da sua expedição ainda assombra os entusiastas do alpinismo.
Mas uma coisa é certa, a montanha de fato “continua lá”, só que agora os próximos desbravadores terão que se adequar às novas regras.