Camuflar dores para lidar com a ferida do outro é destaque na realidade dos profissionais da saúde mental
Há mais de um ano enfrentando a pandemia do novo coronavírus e ultrapassando a marca de 550 mil mortos, o Brasil vive um dos seus piores momentos. Mesmo aqueles que não foram acometidos diretamente, conquistando o privilégio de respirar, tiveram de lidar com os demais efeitos do vírus, como o isolamento social. A adaptação a esse novo normal, onde uma das consequências do afeto é a perda, trouxe um desfecho drástico a um povo tão caloroso, e, como nunca antes visto, ouviu-se falar de saúde mental.
Com agendas cheias e rotinas agitadas, os psicólogos conseguiram encontrar sua valorização em meio ao caos, em uma realidade e demanda um tanto quanto incomuns. “Há um mês, eu realmente me senti exausta e precisei parar um pouquinho, precisei tirar alguns dias para mim”, alegou a psicóloga Sandra Filatro, 51, formada pela Universidade Católica de Santos e pós-graduada na Universidade de Campinas, em relação à sua atuação durante a pandemia.
Vivendo uma nova realidade
Sandra, como outros profissionais da saúde mental, teve um aumento de clientes no consultório durante o isolamento. Apesar de não fazer parte da linha de frente contra a covid-19, ela relatou uma exaustão que jamais havia sentido. Segundo a psicóloga, diversas vezes ela se viu recebendo pacientes antigos ou até mesmo pacientes encaminhados por clientes que, anteriormente, passaram por um processo terapêutico com ela. Além disso, Filatro também citou que médicos de diversas vertentes orientaram seu público a dirigir-se à psicoterapia.
“A pandemia exacerbou todas as dores, as ansiedades, o medo do desconhecido, desse vírus e as incertezas. Por consequência do vírus, nós tivemos muitos lutos. Eu digo lutos não só de mortes, mas também tivemos lutos de perdas de trabalho, do social e da liberdade”, aponta.
Nesse prisma, o fluxo de clientes novos em sua agenda aumentou, fazendo a terapeuta recorrer a uma jornada ampliada e árdua, uma vez que o trabalho em casa também é uma realidade para profissionais da saúde mental. Sandra definiu ter um “misto de sentimentos” em relação ao atendimento remoto. “Foi muito intenso a nível de estudo e de demanda, mas o que pesou foi que, a cada paciente, eu sentia que a demanda era quase a mesma”.
O processo de adaptação
Sandra, porém, não se retira da narrativa ao afirmar que ela mesma precisou conviver com as perplexidades do confinamento. “É como se rapidamente eu tivesse que estruturar os meus conteúdos internos para não confundir e não transferir para o paciente”, desabafa. Ela ainda diz que alguns clientes tiveram dificuldade de separar a mesma questão, pois, em forma de empatia, muitos a perguntavam como ela estava se sentindo em tempos tão perturbados.
Entretanto, não foi apenas essa adversidade que Filatro precisou lidar: a complexidade de novos assuntos caiu no colo de Sandra de surpresa. A terapeuta declara que precisou voltar a estudar temáticas que não observava no consultório há um tempo. O luto é um tópico de realce desde o início da pandemia do novo coronavírus e, naturalmente, a profissional notou essa questão sendo refletida nas psicoterapias.
A profissional também comenta o processo de adaptação ao trabalho remoto e como o mesmo trouxe dificuldades tanto para ela quanto para seus clientes. “Tive que ajudar meus pacientes a se adaptarem, tive que por regras, como deixar o celular parado e manter uma certa distância do vídeo, já que gosto de ver, no mínimo, do tórax para cima”.
As restrições dos indivíduos para com as atuais medidas de segurança caracterizaram um processo intenso, em que muitos se viram obrigados a se adaptar a uma nova realidade. A partir disso, Sandra compartilhou que, assim como outros, também apresentava suas ressalvas em relação à dinâmica remota, mas que precisou se libertar de suas amarras nessa nova fase, até que tudo se tornasse um grande processo de aprendizagem.
“Antigamente eu tinha toda uma observação corporal, da troca de perna, mudança de lugar, da forma de sentar, do cruzar de braços, e hoje fui estudar e observar muito do tronco para cima, da expressão facial, do mexer de cabelo e dos tics de fala”, relatou Sandra, explicando como principalmente seu processo de análise e observação do paciente sofreu modificações.
Exaustão e saúde mental
Tendo em mente que Sandra precisou retomar o aprendizado de algumas temáticas e também lidar com a carga intensificada no ambiente de trabalho, a terapeuta se viu consumida pelo cansaço. Além disso, como santista, ela enfrentou uma sequência de isolamentos absolutos desorganizados entre os meses de março e abril, o que alterou sua rotina de maneira imprevista: “Eu sou muito de pisar na areia e tomar um banho de mar. Nesse último lockdown, sem poder fazer isso, eu senti que realmente eu não estava recarregando a minha bateria para poder seguir”.
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A falta do toque e de outros contatos físicos no geral também prejudicaram o cotidiano profissional de Filatro. Devido ao maior fluxo de atendimentos virtuais e, por consequência disto, o impedimento de ver o paciente de forma presencial, a profissional necessitou dobrar sua atenção e motivação. Ela ainda expôs a diferença do olhar dos clientes na plataforma digital em comparação ao que acontece ao vivo: “Sinto falta do toque da mão, do abraço, do olho no olho, isso faz parte do nosso trabalho e a falta é nítida”.
A colega de graduação de Sandra Filatro e pós-graduada em neuropsicologia, Maria Ligia da Silva, 52, também enviou um depoimento à ESQUINAS dizendo que já havia conversado com a amiga de longa data sobre o cansaço no consultório. “O trabalho remoto nos sobrecarrega. Quando nós atendemos no presencial, podemos finalizar a terapia, levantar, tomar um café ou uma água… O remoto tem outro formato e outro ritmo. Precisamos estar sentadas e muitas vezes ficamos em posições desconfortáveis para que o sinal da internet não suma durante a terapia”.
A intensidade dos transtornos
Coerentemente, Filatro precisou enfrentar o aumento na existência de alguns distúrbios. “A Síndrome do Pânico está em primeiro lugar, depois vem o TOC, por conta da limpeza e dos pensamentos obsessivos tanto em relação à higiene quanto em relação à morte”, começou ela. “Além do Transtorno de Humor, a irritabilidade e a falta de controle das pessoas sobre suas emoções foi algo bem forte”.
Gabriela Pereira, 19, estudante de administração na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC) e paciente de Maria Ligia, afirmou que recorreu à terapia durante a pandemia por perceber a volta de algumas dificuldades psicológicas: “Eu já havia passado por um processo terapêutico aos 16 anos, mas parei após entrar na faculdade. Agora, com o isolamento, eu voltei a buscar uma profissional porque me peguei com pensamentos estranhos, aflições muito grandes e crises constantes”.
A jovem contou à ESQUINAS que é diagnosticada com Transtorno de Ansiedade desde a adolescência. “Fiquei preocupada, pois eu estava conseguindo lidar com ela [a ansiedade] no começo de 2020, mas ficar ‘trancada’ em casa aguçou alguns sintomas e eu me vi em colapso”.
Sobre este assunto, Sandra Filatro afirmou que, de fato, o isolamento e as perdas de entes queridos deixará sequelas nos indivíduos, da mesma forma que a doença está gerando problemas fisiológicos nos sobreviventes. “Teremos muitos órfãos da Covid, muita gente tendo que crescer rápido e se apoderar de responsabilidades também porque perderam seus pais”.
Valorização dos profissionais da saúde mental
No entanto, foi diante do trágico momento histórico e da devastadora crise sanitária que tais profissionais conquistaram reconhecimento. Sandra explica que o momento foi propício para que muitos tabus em relação à saúde mental fossem quebrados, caracterizando um importante passo para o autoconhecimento dos indivíduos. “Saiu do papel do ‘eu converso com meu amigo, eu me viro sozinho’, as pessoas começaram a perceber que não é assim e começaram a experimentar”, contou. “Eu tive muitos pacientes que viraram para mim e falaram ‘eu não sei como você vai conseguir me ajudar, mas to aqui’ e acabaram ficando, e hoje dizem que não vão mais abandonar a terapia”.
“Existe uma valorização da profissão, fazia tempo que a gente precisava sentir isso e eu tive muitos médicos me encaminhando”, observou a psicóloga. Segundo ela, o processo de compreensão da sociedade acerca do papel da psicologia e da importância da saúde mental foram essenciais nesse momento.
A colega de Sandra, Maria Ligia da Silva, também concordou com as afirmações da terapeuta: “A gente vem notando que a nossa profissão é uma das que mais tem crescido. Eu noto também que o próprio jornalismo, a farmácia e a bioquímica também se tornaram áreas essenciais na pandemia. Então, de uma certa forma, há um lado positivo nessa nova realidade”.