Com o avanço da IA generativa, é essencial entender impactos da divulgação de ilustrações que imitam estilos tradicionais, como o do Ghibli
Com a última atualização da ferramenta GPT-4o, lançada em 25 de março, que aprimorou significativamente a criação de imagens a partir de descrições textuais detalhadas, uma nova tendência surgiu com força nas redes sociais: a transformação de fotos pessoais em ilustrações que imitam o estilo visual icônico do Studio Ghibli.
Essas imagens, muitas vezes encantadoras e nostálgicas, têm conquistado milhares de curtidas e compartilhamentos, mas também levantado um intenso debate entre artistas, especialistas em arte e fãs do estúdio japonês.
Nesse novo cenário, a linha entre homenagem e apropriação se torna cada vez mais tênue e arriscada. A popularização de ferramentas de inteligência artificial capazes de reproduzir estilos artísticos levanta uma questão central: até que ponto é legítimo replicar digitalmente uma estética construída ao longo de décadas por meio de trabalho manual, sensível e autoral?
A discussão vai além do avanço tecnológico em si. Ela envolve, também, a valorização do processo criativo e o reconhecimento dos artistas que desenvolveram essas linguagens visuais. Ao desconsiderar a autoria e o contexto histórico por trás de determinada estética, corre-se o risco de transformar a expressão artística em mero produto, esvaziando seu significado e sua profundidade cultural.
Por isso, é fundamental compreender como as inteligências artificiais (IA) estão impactando o mundo da arte contemporânea e, além disso, discutir como as legislações sobre direitos autorais e propriedade intelectual devem se adaptar a esse novo paradigma, no qual máquinas passam a participar ativamente do processo criativo.
Studio Ghibli
O Studio Ghibli é um estúdio de animação japonês fundado em 1985. Sediado em Tóquio, o estúdio conta com 24 longas animados e uma forte reputação ao redor do mundo, sendo considerado um verdadeiro clássico da animação.
Com grandes sucessos, como Meu amigo Totoro e A Viagem De Chihiro, o estúdio é conhecido por utilizar técnicas tradicionais de animação: preferindo o lápis e o papel à computadores, cada quadro é desenhado a mão usando um estilo aconchegante e temas que refletem a cultura oriental com paisagens fascinantes, cores suaves, aquarelas e tintas acrílicas.
Hayao Miyazaki, cofundador e autor das principais obras do Studio Ghibli, sempre demonstrou uma posição contraria a automação dos processos artísticos, expondo um sentimento de aversão ao uso desenfreado de IA contribuindo para o aumento do debate acerca da moralidade na divulgação das imagens inspiradas nesse estilo.
“A inteligência artificial pode ser um fator determinante na exclusão dos artistas do mercado de trabalho. Mesmo que ainda haja muitas pessoas lutando contra isso, é um problema real e isso ficou muito evidente com as criações recentes relacionadas à obra do Studio Ghibli. Um ponto importante a ser discutido é a nossa visão sobre o que é arte. Quando um artista cria algo, existe sentimento, paixão e estudo por trás daquilo. Há técnica, há repertório. A inteligência artificial apenas repete”, revela a artista Nicole Braga.
Essa preocupação se baseia na realidade de muitos profissionais da área criativa, que são cada vez mais pressionados a competir com a velocidade e o baixo custo da produção automatizada. A lógica do consumo rápido — alimentada por algoritmos — tende a priorizar o impacto visual imediato em detrimento da profundidade artística e da originalidade.
Geração de imagens por IA
Nesse cenário, a possibilidade de gerar imagens em segundos a partir de descrições textuais impressiona, mas também levanta questionamentos sobre como essas ferramentas estão sendo treinadas.
Paulo Teixeira, Diretor de Desenvolvimento de Soluções de Nuvem da Microsoft, no Brasil, explicou que esse treinamento é dividido em etapas.
A primeira delas, que antecede a IA generativa, é a geração de imagens usando algoritmos de inteligências artificiais tradicionais, e se dá pelo deposito de grande volume de imagens dentro de uma rede neural.
Essa rede neural funciona a partir de um processo de aprendizado supervisionado: você insere diversas imagens — de maçãs, por exemplo — e confirma quando a identificação está correta. Com o tempo, a rede aprende a reconhecer padrões visuais característicos dessas imagens.
“Essa é uma técnica tradicional de geração de imagens. Por exemplo, se você quer treinar com um estilo artístico, como o de Van Gogh, insere diversos quadros do Van Gogh e pede para a IA gerar uma imagem. Se ela conseguir criar uma imagem naquele estilo, você valida como correta. Então, ela se torna uma IA capaz de criar quadros no estilo de Van Gogh. Isso não é cópia nem plágio, mas uma criação inspirada em Van Gogh. Ela usará traços parecidos, mas com cenas e cenários completamente diferentes. Essa é a primeira parte”, comenta Teixeira.
A IA generativa, entra em uma segunda parte: é necessário converter um comando textual em uma imagem.
“Portanto, o processo tem duas etapas: a primeira é entender o que você pediu em forma de texto. Depois, ele utiliza o modelo de geração de imagens para criar a foto. Por isso, dizem que, se você fizer um prompt errado — ou seja, se explicar mal o que deseja —, o resultado da imagem não será como você queria. Todas as ferramentas de geração de imagem funcionam dessa forma. É preciso descrever com muita clareza o que se deseja”, explica.
Conclui-se, então, que a geração de imagens por inteligência artificial é resultado de um processo técnico estruturado, que envolve duas etapas fundamentais: o treinamento da rede neural com grandes volumes de dados visuais e a interpretação de comandos textuais para a criação das imagens. Esse processo, como explicou Paulo Teixeira, não se limita à simples reprodução de estilos, mas à construção de novos conteúdos baseados em padrões previamente aprendidos.
VEJA MAIS EM ESQUINAS
IA: a inteligência artificial irá substituir os empregos?
IA e Mercado de Trabalho: falas, gestos, expressões e imagens, a linguagem humana como cópia
Arte do século XXI: entenda a inteligência artificial no universo artístico
Direitos autorais
À medida que essas tecnologias evoluem e se tornam mais acessíveis, torna-se essencial discutir como se dá a utilização de obras pré-existentes em seus treinamentos e quais são as implicações disso para os direitos autorais.
Afinal, se uma imagem é criada a partir de um estilo claramente associado a um artista ou a uma obra protegida por lei, quem detém a autoria dessa nova criação? A IA, a empresa que a desenvolveu, o autor original cujo trabalho serviu de base, ou a pessoa que escreveu o prompt? Esse debate se intensifica diante da ausência de regulamentações específicas para criações geradas por algoritmos, o que gera um vácuo legal e abre espaço para disputas e inseguranças jurídicas no campo da arte digital.
A advogada Lorena Yamada, comenta que essas questões dependem do contexto e da interpretação jurídica devido à ausência de uma legislação especifica sobre a titularidade de obras criadas por IA.
“De início, podemos descartar a IA como autora, já que ela não é uma pessoa física, não possui personalidade jurídica e tampouco consciência criativa. Assim, a autoria legal de uma imagem gerada por IA pode ser atribuída ao ser humano que comandou o processo de criação, seja ao escrever os prompts, ajustar os parâmetros ou selecionar o resultado, outra possibilidade seria considerar o desenvolvedor da tecnologia como autor”, explicou ela.
Outro ponto que levanta discussões relevantes é a apropriação de estilos visuais já existentes. Nesse contexto, Lorena destaca que a simples inspiração em um estilo não é, por si só, ilegal.
“O uso do estilo visual de um artista ou de um estúdio, por si só, não é considerado ilegal. Agora, se o estilo é muito característico de um autor ou de um estúdio, reproduzir uma obra utilizando-se desse estilo visual, resultando em algo quase idêntico a uma obra original, ou que cause confusão sobre sua autoria, pode configurar uma violação de direitos autorais; especialmente se for feita sem autorização do autor ou daquele que é titular do direito.”
Essas discussões evidenciam como a presença da inteligência artificial no campo das artes está redesenhando os contornos do direito autoral, colocando em xeque conceitos tradicionais de autoria e originalidade. A ausência de uma regulamentação específica amplia a complexidade do tema e deixa criadores, usuários e empresas em uma zona de incerteza jurídica. Para que haja um equilíbrio entre inovação tecnológica e a proteção dos direitos dos autores, torna-se indispensável colocar foco e debater a evidente necessidade de se atualizar as legislações vigentes, criando parâmetros que reconheçam as particularidades das obras geradas por algoritmos sem negligenciar o papel fundamental da criatividade humana nesse processo.