Filho do autor garante que, seguindo condições do pai, haveria possibilidade de adaptar Cem Anos de Solidão para as telas
64 anos depois, diante de milhões de espectadores por todo o planeta, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu autor rechaçou mais uma produtora. Depois de repetidas recusas de Gabriel García Márquez, a adaptação de Cem Anos de Solidão para as telas foi, enfim, permitida pelo filho do escritor, Rodrigo García Barcha, em 2019. A obra estreou como série na Netflix no dia 11 de dezembro de 2024, para 190 países.
Ainda que seja mais conhecido como escritor, Gabriel García Márquez sempre se colocou como um grande entusiasta de cinema. Foi um dos criadores da Escola Internacional de Cinema e Televisão (EICTV), fundada em Cuba, em 1986, que até hoje forma profissionais do audiovisual. Alguns de seus principais livros, como “O Amor nos Tempos do Cólera”, “Crônica de uma Morte Anunciada” e “Ninguém Escreve ao Coronel”, já foram adaptados para filmes – o primeiro com trilha sonora original feita por Shakira. Dessa maneira, o que explica a resistência do colombiano à transformação de sua obra mais aclamada em produção audiovisual? Ana Cecilia Olmos, professora de literatura hispano-americana na USP, lembra que as outras obras de García Márquez que foram adaptadas para as telas não eram consideradas parte do chamado realismo mágico: “É muito diferente. O realismo mágico supõe que você está dentro de uma realidade onde a diferença entre o natural e o sobrenatural não existe. Então ninguém se surpreende quando Remédios sai voando, por exemplo. A imagem pode impactar o espectador de uma maneira que no livro não acontece. Acho que a preocupação do García Márquez passava muito por isso”.
Em um texto escrito em 1982, o autor deu pistas de sua descrença na adaptação: “Meu desejo é que a comunicação com meus leitores seja direta, por meio das letras que escrevo para eles, para que imaginem os personagens como quiserem – e não com o rosto emprestado de um ator na tela”. Em material divulgado pela Netflix, no entanto, seu filho e produtor executivo da série, Rodrigo García Barcha reforçou que o pai costumava dizer que “se fosse possível filmar ‘Cem Anos de Solidão’ em várias horas, em espanhol e na Colômbia, talvez considerasse a ideia”. A fala inclusive ajuda a explicar a escolha por uma série, e não um filme. Outro fator, acredita Ana Cecilia Olmos, é a veiculação original do livro, como um romance de folhetim. “É uma lógica parecida com a telenovela. Acredito que eles vão aproveitar isso”.
Letícia Arese, instrutora do Clube de Leitura Mutatis, acredita que a adaptação pode seguir caminhos diferentes. “Eu acho que as adaptações não suprem a leitura. Como um exemplo, nos grupos de leitura eu estou vendo que muita gente assistiu a Ainda Estou Aqui nos cinemas e ficou com vontade de ler o livro. Alguns já compraram o livro, inclusive. Então, o filme foi um incentivo para que as pessoas lessem o livro”. Ela, no entanto, faz um contraponto. “Às vezes se perde algumas partes, precisa tirar alguns personagens… um exemplo de filme que eu acho que perdeu muito com relação ao livro foi A Casa dos Espíritos, de Isabel Allende, que tiraram partes muito importantes e que fizeram muita falta, na minha opinião.” Ela ainda cita o filme Lavoura Arcaica, baseado no livro de Raduan Nassar, como exemplo de adaptação mais representativa da obra, de forma até literal. “Inclusive, as falas seguem exatamente o livro”.
Neste ano, outro lançamento indesejado por Gabriel García Márquez foi feito por seus filhos. “Em Agosto Nos Vemos” chegou às livrarias em 6 de março, data em que o escritor completaria 97 anos. O autor nunca julgou a obra boa o suficiente, e chegou a dizer que ela deveria ser destruída. Seus filhos, no entanto, disseram que ao reler o texto anos depois acharam-no melhor do que lembravam, com muitos méritos. Assim, contrariando o pedido do pai, publicaram o livro, postumamente, 10 anos após sua morte.
Por que Cem Anos de Solidão foi – e ainda é – um fenômeno tão grande?
Mais do que resumidamente, Cem Anos de Solidão conta a saga da família Buendía, fundadora da mítica cidade de Macondo. Durante suas 432 páginas – na edição em português da Editora Record -, o livro viaja pelas várias gerações da estirpe, detalhando as desventuras de cada um dos personagens, com saltos temporais e narrador onisciente. Para muitos críticos, é a segunda maior obra já escrita em língua espanhola, somente atrás de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.
A principal razão para tamanha fama, aponta Ana Cecilia Olmos, é a representação da identidade latino-americana perante ao resto do mundo. “Cem Anos de Solidão foi um fenômeno de mercado já no ano que foi publicado (1967). É o momento do chamado ‘boom latino-americano’, com Cortázar, García Márquez, Vargas Llosa, Carlos Fuentes… é um momento em que a literatura latino-americana ganha uma projeção internacional inédita”, diz a professora. “E o que aconteceu com o livro é que ele foi lido como uma proposta estética que representava uma identidade latino-americana. Na leitura que se fez desse romance, se identificou o realismo mágico como um modo narrativo representativo da identidade latino-americana e da realidade latino-americana no geral”, completa.
Com seus acontecimentos fantásticos, como a epidemia de insônia ou o dilúvio de exatos 4 anos, 11 meses e 2 dias que tomam conta de Macondo, por exemplo, o realismo mágico aparece como um estilo “muito sedutor”, acredita a acadêmica. No entanto, isso leva a alguns erros de compreensão a respeito do movimento, de García Márquez e da própria América Latina. Ana Cecília lembra que, ainda que seja talvez a fórmula de maior sucesso mercadológico, o realismo mágico é somente uma forma, dentre tantas possíveis, de retratar o sub-continente, uma vez que “é impossível captar a América Latina em um modo narrativo, apenas”. Ademais, a professora critica uma tendência de reduzir García Márquez ao realismo mágico, quando a maior parte de suas produções não fizeram parte do movimento. O escritor tampouco foi quem iniciou a corrente: “É um movimento que se desenvolve desde o início do século XX, com o ‘real maravilhoso’ de Carpentier, a literatura de Miguel Ángel Asturias, que explora o imaginário das comunidades maias… bem antes dos anos 60”.
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Das páginas para as telas
Na capa da edição em português – também da Editora Record, com tradução de Eric Nepomuceno – do livro Pedro Páramo, estão as aspas de Gabriel García Márquez: “A leitura profunda da obra de Juan Rulfo me deu, enfim, o caminho que buscava para continuar meus livros”. O texto do mexicano, de 1955, começa com Juan Preciado contando a própria históra. O homem segue o último pedido de sua mãe antes de morrer, e vai à cidade de Comala para encontrar seu pai, Pedro Páramo. Chegando na cidade, no entanto, ele descobre que seu pai faleceu há muitos anos, e que as pessoas em Comala com quem conversa estão também mortas. O livro entremeia a história de Pedro Páramo com as descobertas de Juan Preciado, um de seus muitos filhos, e possui elementos de realismo mágico, tendo sido, como disse García Márquez, uma referência para Cem Anos de Solidão. Curiosamente, as duas obras chegaram à Netflix praticamente juntas. O filme de Pedro Páramo estreou mundialmente na Netflix no dia 6 de novembro de 2024.
Mantendo-se fiel ao enredo da história original, a produtora escalou somente mexicanos nos papéis principais, forma de escolha de elenco que se repete em Cem Anos de Solidão, que conta apenas com atores colombianos.
Apesar dessa atenção aos detalhes, comentários em redes sociais de fãs do livro mostravam uma mistura de ansiedade com receio para a estreia da série. É o que relata Letícia Arese: “Eu estou muito animada, mas ao mesmo tempo receosa, com o medo de como eles vão retratar Macondo. O vilarejo de Macondo é um dos personagens mais importantes do livro, assim como a casa dos Buendías, eu acho que algumas coisas no livro também são personagens. E eu tenho a cidade, os personagens, a casa… tudo no meu imaginário já muito concreto. Então eu fico com medo da série ser muito diferente ou ser de uma forma que eu não goste”.
A Netflix dividiu a série em duas temporadas, sendo a primeira disponibilizada no catálogo no dia 11 de dezembro de 2024, com oito episódios de uma hora cada. “Acho que série é melhor do que filme, porque filme geralmente tem que suprimir algumas partes que eu acho importantes do livro. A série tem mais fôlego para conseguir mostrar todos os detalhes, e Cem Anos de Solidão é feito de detalhes. Então eu acho que qualquer parte que fosse tirada faria muita falta”, celebra Arese.